Ouça a Rádio BdF
Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Seria ótimo ajudar o México a se tornar um lugar feliz

Minha ambição é viver minha vida em uma dessas colônias militares, entre meus compañeros que amo, que sofreram tanto e tão profundamente comigo

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Quando eu estava na pós-graduação, assisti a uma aula de Friedrich Katz (1927-2010), um dos grandes historiadores do México de sua geração. Durante a Segunda Guerra Mundial, o pai de Katz, Leo, era jornalista e participou da resistência antinazista em Berlim, tendo posteriormente contrabandeado armas da França para a República Espanhola em um momento de extrema necessidade. Quando os nazistas invadiram a França, Leo e sua esposa, Bronia Rein – ambos judeus e comunistas – fugiram para o México, onde o governo do presidente Lázaro Cárdenas havia aberto suas portas a qualquer pessoa que fugisse do fascismo ou lutasse pela República Espanhola.

Friedrich Katz cresceu no México e permaneceu grato ao país pelo resto da vida. Em seu seminário sobre a Revolução Mexicana, nos presenteava com histórias notáveis ​​sobre as pessoas comuns que derrubaram o Porfiriato, a ditadura militar do General Porfirio Díaz (1876-1911). Uma das minhas anedotas favoritas era a do dia em que o Exército Libertador do Sul (Ejército Libertador del Sur), de Emiliano Zapata, entrou na Cidade do México com a Divisão do Norte (División del Norte) de Pancho Villa. Ambos entraram no Palácio Nacional no Zócalo, o acharam desconfortável e quiseram voltar para casa, para suas áreas rurais de Morelos (para Zapata) e Durango (para Villa), para continuar a revolução agrária. Katz ria e dizia: “Eu também os teria seguido de volta para o campo”.

Foi o professor Katz quem primeiro me deu um exemplar de México Insurgente (1914), de John Reed, um dos grandes feitos da reportagem revolucionária, superada apenas pelo próprio Reed cinco anos depois com Dez Dias que Abalaram o Mundo (1919), sobre a Revolução Bolchevique. Reed, que conviveu com Villa e Zapata, incluiu um belo capítulo sobre o sonho de Pancho Villa para o México:

Colocaremos o exército em ação. Em todas as partes da República, estabeleceremos colônias militares compostas por veteranos da Revolução. O Estado lhes concederá terras agrícolas e estabelecerá grandes empresas industriais para lhes dar trabalho. Três dias por semana, trabalharão – e trabalharão arduamente -, porque o trabalho honesto é mais importante do que lutar, e só o trabalho honesto forma bons cidadãos. E nos outros três dias, receberão instrução militar e sairão para ensinar todo o povo a lutar. Então, quando a Pátria for invadida, bastará telefonar do palácio na Cidade do México e, em meio dia, todo o povo mexicano se levantará de seus campos e fábricas, totalmente armado, equipado e organizado para defender seus filhos e seus lares.

Minha ambição é viver minha vida em uma dessas colônias militares, entre meus compañeros que amo, que sofreram tanto e tão profundamente comigo. Acho que gostaria que o governo estabelecesse uma fábrica de couro lá, onde pudéssemos fazer boas selas e freios, porque sei como fazer isso. E o resto do tempo eu gostaria de trabalhar na minha fazendinha, criando gado e plantando milho. Seria ótimo, eu acho, ajudar a tornar o México um lugar feliz.

Que lindo sonho.

O México conquistou sua independência da Espanha em 1821. Desde então, tem lutado para romper primeiro com o sistema pós-colonial espanhol, que o manteve como exportador de matérias-primas baratas, e depois com o sistema imperial impulsionado pelos EUA, em cujas garras neocoloniais permanece devido ao seu papel subordinado na divisão internacional do trabalho. Em 2017, o ex-chefe de governo da Cidade do México e duas vezes candidato presidencial (2006 e 2012) Andrés Manuel López Obrador – ou AMLO – publicou em 2018 La salida: Decadencia y renacimiento de México [A saída: Declínio e renascimento do México]. O livro, que se tornou uma espécie de texto de campanha para a bem-sucedida corrida presidencial de AMLO em 2018, estabeleceu a afirmação de que o Movimento de Regeneração Nacional (Movimiento de Regeneración Nacional, Morena) lideraria a Quarta Transformação do México (a “4T”). As três primeiras transformações, escreveu AMLO, foram a Guerra da Independência (1810-1821), a Guerra da Reforma (1858-1861) e a Revolução Mexicana (1910-1917). Ele sustentou que seria inútil para o México passar por uma presidência reformista que apenas promulgaria alterações cosméticas quando o que o país precisava era de uma correção mais profunda e estrutural.

AMLO baseou sua agenda nos períodos mais dramáticos da história mexicana e sugeriu que a promessa da Revolução Mexicana havia sido quase totalmente apagada pelas décadas de subordinação aos Estados Unidos, pela corrupção da plutocracia mexicana e por uma burocracia estatal que havia perdido a vontade política de defender a Constituição de 1917.

Do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, vem o dossiê n. 92, México e sua Quarta Transformação (set. 2025), pesquisado e escrito por Stephanie Weatherbee Brito (da Assembleia Internacional dos Povos) e Alina Duarte (do Instituto Nacional de Educação Política do Morena). A meu ver, este é o primeiro texto do gênero a situar adequadamente o movimento Morena em contexto histórico e explicar o processo social da 4T. O dossiê mostra como os protagonistas do movimento Morena levaram trinta anos para construir um projeto político a partir da longa jornada de Cuauhtémoc Cárdenas para reformar a política mexicana e retornar às políticas e promessas da presidência de seu pai, Lázaro Cárdenas (1934-1940) – o mais à esquerda dos 64 presidentes mexicanos antes de AMLO e agora Claudia Sheinbaum. Essas políticas – conhecidas como cardenismo – incluíam a independência da interferência dos EUA, o controle dos recursos do México (incluindo a nacionalização do petróleo em 1938), a reforma agrária (incluindo a criação de escolas rurais para minar o poder dos proprietários de terras e a introdução de unidades coletivas de produção agrícola familiar conhecidas como ejidos) e o avanço social (por meio da expansão do acesso à educação, do apoio aos sindicatos e do respeito às ricas culturas indígenas do México). A 4T do Morena é construída sobre os princípios de soberania e dignidade do cardenismo, agora renovados para o século 21. O dossiê fornece um texto didático para pessoas interessadas na jornada do México: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos (¡Pobre México! Tan lejos de Dios, y tan cerca de los Estados Unidos) – a frase proferida por Porfirio Díaz antes de ser derrubado pela Revolução Mexicana.

Cada um dos períodos de transformação do México também produziu arte e cultura notáveis, e o 4T não é exceção. As obras de arte neste dossiê são da série de murais Los Nadies, criada pelo Colectivo Subterráneos em Oaxaca, México. Fundado em 2021 para democratizar a arte como ferramenta de transformação social, o coletivo se inspira na tradição gráfica mexicana – do Taller de Gráfica Popular (Oficina Gráfica Popular) ao muralismo mexicano – bem como no Movimento Popular de Professores de Oaxaca de 2006. Inspirada no poema homônimo de Eduardo Galeano, a série inclui gravuras e murais que destacam povos indígenas e mestiços esquecidos pelo domínio colonial e pelo capitalismo moderno, confrontando a dívida histórica com os marginalizados e amplificando vozes que exigem justiça em um México em transformação.

Enquanto novos movimentos produzem novos tipos de arte, também há artistas cujo trabalho dá voz a esses movimentos. O poeta Enrique Márquez Jaramillo (nascido em 1950) desenvolveu um estilo ácido e surrealista que espelhava as revoltas que abalaram o México durante sua vida e a corrupção burocrática arraigada de sucessivos governos. Em 1996, ele escreveu Breve dicionário para mexicanos furiosos, que transmitia o pulso de uma população que vivia sob a miséria do ataque neoliberal. Esse espírito travesso retornou em 2012, quando Jaramillo organizou a Cúpula Mundial de Indignados, Dissidentes e Insurgentes, na Cidade do México. Essa coalizão de correntes dissidentes e indignadas se uniu para eleger AMLO em 2018. Portanto, vale a pena retornar a um dos poemas mais esperançosos de Jaramillo – “Barco a la deriva” [Barco à deriva], parte de sua coleção de 1982 En el caño del mundo que recaña uyuyuy [Na sarjeta do mundo que diz Uyuyuy]

É necessário salvar o navio,
sua tripulação,
o carregamento.
Salve-a você que sabe o ofício,
que pode tranquilizar a desordem
das máquinas e o fragor das ondas
com o simples toque de dedos,
com o bálsamo de um sorriso.
Não permita que naufrague
este teimoso barco à deriva.
Ofereça ao fim teu porto,
conduza-o
a seu pier úmido,
e verás como se aquieta
este incêndio voraz
que me consome.

Cordialmente,

Vijay

Veja mais