A palavra liberdade foi a mais gasta pelo bolsonarismo: evocada em discursos no cercadinho, estampando faixas por intervenção militar, nomeando decretos presidenciais. Como as bandeiras nacionais expostas nas janelas dos apartamentos, a palavra sofreu o desgaste das intempéries do tempo, de tanto ser usada como slogan anti-vacina, e emprestava a uma campanha anti-cuidado o estranho verniz de uma aspiração humanista.
“Dar a vida pela minha liberdade” tornou-se o juramento do herói hiper-individualista, comprometido com salvar ninguém mais a não ser sua própria e assassina possibilidade de transitar pelos espaços públicos e infectar os concidadãos. Voltada contra a comunidade, a palavra se desgastou no atrito com o áspero contexto de morticínio.
Se a história não se repete, ela rima: na história do Brasil, essa não era a primeira vez em que ela se tornava objeto de disputas pela vida ou morte. Durante a luta pela abolição da escravidão, em meados do século 19, os senhores e traficantes escravistas concebiam a liberdade segundo o direito absoluto de propriedade, especialmente o direito de ter uma pessoa escravizada.
O argumento em favor da liberdade econômica fundamentava o direito de escravizar, já que o cativeiro de um assegurava a livre empresa de outro – uma ideia de liberdade tipicamente senhorial que, salvas as devidas proporções, tem incômoda ressonância com os argumentos a favor da escala 6×1 atualmente.
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Obviamente, este não era o único significado que estava na mesa: a revolução haitiana de 1791 havia “hackeado” a palavra de ordem da revolução francesa de “liberdade, igualdade e fraternidade” para se voltar contra a própria França, seu colonizador, e estabelecia que a vocação da liberdade era abolicionista e anti-colonial.
A revolução no Haiti denunciava a incoerência do projeto das revoluções burguesas, situando na colônia o protagonismo das aspirações libertárias do mundo, e por isso acendeu alertas em toda a ordem senhorial latinoamericana, deflagrando reações para conter que processos iguais se repetissem continente afora.
Entretanto, da formação de quilombos à atuação de advogados abolicionistas no Brasil, o espírito da liberdade insubmissa e negra se irmanava à luta no Haiti: em 2019, a escola de samba da Mangueira recuperou a palavra liberdade para as mãos dos povos em luta, sintetizando que “Não veio do céu/ Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati”.
Dragão do mar faz referência a Chico da Matilde, abolicionista cearense que era chefe dos jangadeiros e se recusava a transportar para os navios negreiros os escravizados que seriam vendidos para o Rio de Janeiro. Essa greve histórica de 1884 levou ao fim da escravidão no Ceará, que deflagrou a abolição no Brasil em 1888.
O neoextrativismo ultraliberal e marginal no governo Bolsonaro
Na versão bolsonarista, a liberdade é filha da violência e o heroísmo da empresa econômica é levado adiante pela ação abertamente criminosa de homens armados na fronteira do neoextrativismo. Isso constituiu aquilo que os pesquisadores Luiz Jardim, Ricardo Gonçalves e Bruno Milanez denominaram “neoextrativismo ultraliberal-marginal”, que caracteriza o modo de expansão da fronteira agromineral durante o governo Bolsonaro (PL).
Após um período de desmonte regulatório promovido via medidas provisórias no governo Temer, que reduziram amarras democráticas e institucionais ao setor da mineração, Bolsonaro optou por boicotar os espaços legislativos e promover a expansão da fronteira agromineral sem recorrer à flexibilização regulatória, apelando para o incentivo aberto à prática criminosa da grilagem e do garimpo ilegal.
Isso se deu por meio de repetidos episódios de exaltação pública de crimes ambientais e de violações de direitos dos povos e comunidades tradicionais, e também do desmonte de órgãos fiscalizadores. O estrangulamento financeiro e a desmoralização de instituições como o Ibama e Funai também fazia parte da cupinização da democracia, em que o governo carcomia por dentro a República e o patrimônio institucional de nossas garantias constitucionais. O arbítrio golpeava internamente a democracia e a célula do autoritarismo se alojava no coração das instituições.
Militarização da política, guerra nos territórios
A expressão mais cruel dessa perversão da ideia de liberdade se deu na crise de saúde dos Yanomami. A crise foi construída como um projeto por Bolsonaro por meio de um longo processo de incentivo à atuação ilegal dos tais indivíduos livres (grileiros e garimpeiros ilegais) e desmonte institucional, produzindo um quadro crítico de desnutrição, malária, pneumonia, verminoses e contaminação por mercúrio, além da violência constante, especialmente contra mulheres e meninas.
Segundo dados oficiais obtidos via lei de acesso à informação em 2023, ao final de 2022 a desnutrição atingia mais de 50% das crianças da Terra Indígena Yanomami, e o número de mortes de menores de 5 anos por causas evitáveis aumentou 29% entre 2018 e 2022.
Ao todo, 570 crianças indígenas morreram e, entre a população total da etnia, as mortes por desnutrição cresceram 331% entre 2018 e 2022. Por tudo isso, em janeiro de 2023, o STF acatou um pedido de investigação de autoridades do governo Jair Bolsonaro pela acusação de genocídio de indígenas yanomami, após um pedido do então ministro da Justiça Flávio Dino.
Condenar o golpismo é dizer que a democracia brasileira pode ser, sim, um território livre, que resguarda a soberania popular da violenta sanha de poder e dinheiro de indivíduos privados
Além disso, a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns levaram uma semelhante denúncia a Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional de Haia, com o tema do genocídio Yanomami e também do tratamento dado por Bolsonaro e Pazuello à pandemia de covid-19, quando mais de 500 mil brasileiros perderam suas vidas, sendo que, se o país tivesse seguido a média mundial de mortes, pelo menos 400 mil não teriam morrido.
O governo com mais militares em cargos civis
Embora a ferida do genocídio seja revisitada nesse momento histórico, dando camadas de significado afetivo e político ao veredito do STF, não foram esses os crimes que levaram à condenação do ex-presidente. O processo pelo qual ele responde diz respeito aos crimes de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Junto a ele, outros sete réus, sendo cinco deles militares, protagonizam a primeira vez na história em que a Justiça brasileira condena um ex-presidente e membros das forças armadas por atentados à democracia. Esses condenados pela fartamente documentada conspiração golpista eram apenas a fração de alto escalão alocada em cargos de um governo que, embora eleito pelas urnas, chegou a ter mais militares ocupando funções civis do que a própria ditadura de 1964.
O retorno das Forças Armadas ao governo pela via eleitoral em 2018 atendia a fantasias de poder mantidas na cultura interna aos círculos sociais das três forças, e eram vistas como uma redenção da moral dos militares pelo reconhecimento popular. Entretanto, essa exposição das patentes à esfera pública logo rendeu uma ampla vitrine para a completa inépcia técnica de figuras graduadas para ocupar cargos públicos e para a insubordinação dos militares ao poder civil e à república.
A expertise em tortura nos porões e em ocultação de cadáveres desenvolvida nos anos de chumbo não serviu para ocultar os 500 mil corpos vítimas da pandemia, nem a escancarada incompetência do general Pazzuelo para organizar as logísticas do cuidado com a vida.
Em sua nova versão do golpismo-cupim, a presença de militares no governo carregou para dentro da república o arbítrio, e eles atuaram como vetores do desmonte institucional de cunho ultraliberal. Mas, dessa vez, não pôde contar com o silêncio: os crimes e incompetência foram expostos à luz do dia, e não guardados por décadas em porões.
A violência aberta contra os territórios e defensores de direitos humanos durante a política ultraliberal de expansão da fronteira agromineral no governo Bolsonaro remetia a cenas do desenvolvimentismo militar dos anos 1970. Naquele momento, o governo militar promoveu seu Plano de Integração Nacional com um largo projeto de ocupação da Amazônia através da abertura de rodovias.
A Transamazônica afetou diretamente ao menos 29 povos indígenas, alguns deles isolados, com remoções forçadas conduzidas pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia para abrir espaço à colonização, estradas e empresas mineradoras. No município de Humaitá, a Paranapanema construiu trechos da estrada e, em seguida, passou a explorar cassiterita, criando a chamada rodovia do Estanho, que atingiu os tenharim.
Assim como nas cenas de hoje, os impactos ambientais foram devastadores: rios aterrados, águas poluídas por lama e óleo, impossibilidade de pesca e consumo de água, além da disseminação de doenças trazidas pelo contato abrupto com não indígenas.
No território Yanomami, a devastação começou com a BR-210 e se agravou na década de 1980, quando cerca de 40 mil garimpeiros invadiram a região, levando a uma denúncia internacional do Estado brasileiro por genocídio. O chamado Relatório Figueiredo, redescoberto apenas em 2013 após décadas dado como destruído, revelou a extensão das violações cometidas: massacres, inoculação proposital de doenças, trabalho escravo, estupros e perseguições armadas contra indígenas. O documento expôs ainda o papel do Estado e de grandes proprietários de terra na violência sistemática contra esses povos.
Em Minas Gerais, os Krenak foram retirados à força de seu território ancestral, transportados nos vagões da Companhia Vale do Rio Doce para que a área fosse entregue pela Ruralminas a mais de 50 fazendeiros.
Do desenvolvimentismo militar ao ultraliberalismo de Bolsonaro, distintas versões da relação umbilical entre controle territorial, rentismo fundiário e autoritarismo se manifestam na forma de uma violência crônica contra povos, inescrupulosamente assentada no Estado. Embora a condenação pelo STF não tenha como objeto os crime de genocídio, a sanha autoritária julgada pelos ministros não está desconectada de processos imediatos de violência contra os povos, mas os viabiliza e lhe atribui forma política dentro do Estado.
Territórios livres, Bolsonaro preso
A incitação aberta feita por Bolsonaro à violência contra as instituições democráticas, que teve seu auge no episódio do 8 de Janeiro de 2023, deve ser entendida lado a lado da incitação feita pelo ex-presidente à atuação ilegal de grileiros, madeireiros e garimpeiros.
A democracia não é feita apenas do rito eleitoral que a conspiração pretendia violar, mas também dos direitos constitucionais que vinham sendo desmontados pela corrosão golpista alojada no governo. De uma concepção ampla da democracia, assentada na vida substantiva dos povos, podemos escalonar essa vitória histórica no vislumbre de um projeto popular e solidário.
Na história de defesa dos direitos à saúde, à participação política, aos direitos territoriais e à própria vida, não é protagonista apenas Alexandre de Morais e a 1ª turma do STF, mas todos os funcionários públicos altivamente engajados no boicote interno ao projeto de desmonte institucional, enfermeiras do SUS, jornalistas, periferias organizadas contra a fome e a violência, comunidades e movimentos populares que, envoltos em tempestade, seguram a primavera entre os dentes, como canta Ney Matogrosso na canção de Secos e Molhados.
Nas fronteiras da violência socioambiental, essa primavera se manifesta, entre outras formas, no conceito de Território Livre de Mineração (TLM). Essa bandeira tem sido construída desde a década de 2010 por movimentos populares e comunidades assediadas pela chegada de grandes mineradoras transnacionais.
Um TLM é construído na iniciativa de povos e comunidades pela elaboração de redes legais de proteção a patrimônios naturais de um lugar, vedando a destruição de serras, águas e matas para acesso ao subsolo. Uma vocação de liberdade muito distinta daquela apregoada por Bolsonaro se manifesta: um território livre se baseia na autodeterminação dos povos e no direito de dizer não ao arbítrio de grandes empreendimentos privados que causam dependência econômica, concentração de renda e profundos impactos socioambientais.
Se no universo de Bolsonaro a liberdade se rebaixa ao mero arbítrio do indivíduo privado, nos territórios livres de mineração, ela se situa no poder da comunidade de sonhar e produzir o próprio destino a partir da cultura, da política, do trabalho e de uma relação de pertencimento à natureza. Condenar o golpismo é dizer que a democracia brasileira pode ser, sim, um território livre, que resguarda a soberania popular da violenta sanha de poder e dinheiro de indivíduos privados.
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Esther Guimarães é militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.