Em uma sessão com excesso de interrupções, deboches e ironias, a Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (16), em primeiro turno, por 353 votos contra 134, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 3/2021, conhecida como a “PEC da Blindagem”. O governo liberou os deputados da base para votar como quisessem. A proposta retoma uma norma usada no passado, sobre a qual é exigida autorização do Congresso Nacional para abertura de processos criminais contra parlamentares. A aprovação de uma mudança constitucional exige o voto de 3/5 do parlamento, ou seja, 308 votos, em dois turnos de votação.
A PEC altera o texto constitucional para proibir a prisão cautelar por decisão monocrática, ou seja, de um único ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A proposta estabelece que a prisão em flagrante de deputados federais e senadores somente será permitida se estiver relacionada a crimes inafiançáveis listados na Constituição.
O projeto ainda impede que a medida cautelar seja decretada por ministro em regime de plantão judiciário. Sendo assim, a prisão em flagrante só poderá ocorrer nos casos explicitados pela Constituição, entre eles racismo, crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas, terrorismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Segundo o texto, a abertura de ação penal contra deputados e senadores precisa, obrigatoriamente, passar pelo parlamento, além de estabelecer o regime de votação secreta para essas autorizações. Foi incluída na proposta a concessão de uma espécie de “foro privilegiado” para presidentes de partidos, que passariam a se beneficiar das mesmas regras.
Líder da maioria na Câmara, a deputada Érika Kokay (PT-DF) chamou a atenção da opinião pública sobre a proposta. “Eu acho que a população tem que ficar extremamente atenta o que está acontecendo aqui hoje, porque aqui parlamentares querem ter o direito de não responder pelos seus crimes”, declarou.
A deputada federal Sâmia Bomfim (Psol) não poupou palavras para criticar a articulação em torno da blindagem. “Isso aqui é praticamente a Câmara secreta, porque o orçamento é secreto, o voto, querem que seja secreto. Só o que não é secreto é a falta de vergonha na cara. Safadeza, minha gente, é transparente, cristalina, evidente para quem quiser ver”, afirmou a deputada, que provocou reação na bancada bolsonarista.
Já o deputado Ivan Valente (Psol-SP), qualificou a agenda do Congresso Nacional como um “golpe continuado”. “Esta votação da PEC da blindagem somada com a anistia fajuta de amanhã e a nomeação da liderança do Eduardo Bolsonaro [estando] lá no exterior, esse quinta-coluna, é golpe continuado, é sabotagem do Brasil”, pronunciou o deputado. “É livrar deputado de casos de corrupção, de assassinato, de maracutaia em emenda, do crime que quiser”, completou.
Valente denunciou ainda que a agenda é resultado da aliança entre os partidos do centrão e da extrema-direita. “Essa questão de acordo do centrão com a extrema-direita mostra o seguinte: não se tem vergonha na cara, não se critica o tarifaço, a intervenção no Judiciário, o golpe de Estado, o fim da democracia, o que vocês querem? Impunidade e semipresidencialismo?”, destacou o deputado.
Por sua vez, Chico Alencar (Psol-RJ) cobrou dos deputados seu compromisso com a transparência de seus votos. “A população quer saber como os seus representantes votam em todas as matérias. Esse voto secreto que essa PEC da blindagem da autoproteção traz. É um absurdo total. O deputado, o senador, tem que ter coragem de expor seu voto em qualquer situação”, defendeu Alencar.
Foi preciso manobrar
A líder do Psol na Câmara, deputada Talíria Petrone (RJ), chamou a atenção para uma manobra da mesa diretora, para permitir que parlamentares que não estavam presencialmente no Congresso pudessem votar.
“Nós estamos então nesse momento numa sessão que a gente não sabe bem como está funcionando”, disse a líder, seguida por Sâmia Bomfim, que expôs o texto do ato normativo que estaria sendo desrespeitado.
“Com base no ato da mesa n.º 54 de 2025, que diz que as sessões e reuniões da Câmara dos Deputados terão o seguinte regime de funcionamento presencial, em que o registro de presença deverá ser efetuado exclusivamente, de forma presencial, nos postos de registro biométrico instalados no plenário. E que o registro de presença poderá ser efetuado nos termos do regime presencial ou por meio do InfoLeg [sistema interno da Câmara]. E diz que o regime presencial será adotado nas reuniões de terças, quartas e quintas-feiras. O presidente da Câmara poderá determinar regime de funcionamento diverso e deverá ser publicado com antecedência mínima de 24 horas”, leu.

“Essa sessão, como todas as sessões de terça-feira, foi convocada no regime de presença aqui biométrica e votação online. Ao longo da sessão, coincidentemente, depois de não observado o quórum suficiente para aprovar essa PEC vergonhosa da blindagem, foi alterado o modelo de registro de presença para registro online, diferentemente de todas as sessões constituídas desde esse ato da mesa, que obriga o registro presencial”, criticou Sâmia, citando a primeira votação de um requerimento para a retirada de pauta do projeto, que recebeu menos votos do que o necessário para aprovação do mérito da PEC.
“Mudaram as regras do jogo durante o jogo”, denunciou Talíria.
O peixe morre pela boca
Em tom de deboche, deputados bolsonaristas fizeram declarações estarrecedoras durante a sessão desta terça. O deputado Bibo Nunes (PL-RS), chegou a assumir publicamente que defende a “blindagem” dos parlamentares.
“Dê o nome que se dê a essa PEC. Pode ser blindado. Mas nós, parlamentares, temos que estar blindados contra um STF que só julga politicamente”, afirmou. “Eu quero ser blindado”, declarou, em outro momento. “Viva a blindagem”, completou.
Já o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) ironizou sobre a necessidade de permissão do parlamento para investigar seus próprios membros. “Se algum deputado cometer crime, ele vai para cadeia, sim. Basta essa casa decidir que sim”, afirmou. “Sim, queremos ser blindados sim”, disse, em outro momento.
Mas houve deputado de direita que não só se posicionou contra a PEC, como alertou sobre um dos efeitos mais graves da proposta: a infiltração do crime organizado na política institucional.
“Votar e aprovar essa PEC é pedir para o crime organizado disputar cadeiras e vencer eleições aqui dentro do Congresso Nacional para se safar das suas investigações”, declarou o deputado Kim Kataguiri (União-SP). “É pedir para a gente do PCC [Primeiro Comando da Capital], do Comando Vermelho disputar a eleição para ter mandato de deputado federal e depois, no voto secreto dessa casa, o sujeito sequer poder responder criminalmente pelos seus atos”, seguiu o deputado.
“Porque o medo, qual é o receio?”, questionou o parlamentar sobre a proposta de voto secreto para autorização de prisão de parlamentares. “Qual é a agenda oculta de querer esconder o voto do deputado quando ele está analisando a prisão de um colega ou um processo criminal contra um colega? Qual é o receio?”, insistiu Kataguiri.
‘Hugo cedeu’
O presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (REP-PB), abriu a sessão desta terça justificando sua decisão sobre a pauta. “A decisão de trazer a pauta com o apoio da maioria do colégio de líderes para que esse plenário possa deliberar acerca de uma matéria que eu julgo de muito importância que é para trazer as garantias constitucionais que os nossos mandatos precisam”, disse o parlamentar, que defendeu o texto da PEC.
“Nada mais é do que o retorno ao texto constitucional de 1988, texto que foi aprovado pela então constituinte, que foi alterado por essa casa e que diante de muitas discussões, de atropelos, de abusos que aconteceram contra colegas nossos em várias oportunidades, a Câmara tem hoje a oportunidade de dizer se quer retomar esse texto constitucional ou não”, declarou o presidente da Câmara, que após sua fala, levantou-se da mesa diretora e deu lugar ao vice-presidente da Câmara, Altineu Côrtes (PL-RJ), retornando pouco antes da votação.
Chico Alencar criticou diretamente a postura de Motta. “Vejam, o presidente Hugo Mota faz um discurso ali da cadeira presidencial de defesa da proposta, saiu da sua neutralidade. Aliás, proposta votada agora e essa urgência da anistia que se fala para amanhã como concessão a vantagem dos que ocuparam a mesa diretora e bloquearam o trabalho, os trabalhos da casa por quase dois dias. Hugo cedeu”, disse o parlamentar, da tribuna.