Nos telejornais, nas redes sociais, nos bares e nas paradas de ônibus Brasil afora está quente o debate nacional sobre anistia. Entendo que a discussão chega em bom tempo. Afinal de contas, já passou da hora de o país compreender que não faz sentido deixar atrás das grades pessoas que fariam um bem muito maior à sociedade estando soltas, podendo cuidar de suas famílias e contribuindo para o desenvolvimento nacional.
Antes de mais nada, é importante definir sobre o que estamos falando: anistia é um ato jurídico e político pelo qual o Estado decide perdoar certos crimes, infrações ou penalidades, fazendo com que deixem de produzir efeitos jurídicos. Diferente do indulto (que é individual), a anistia tem caráter coletivo, alcançando um grupo de pessoas que cometeram determinados atos, geralmente de natureza política ou social.
Atualmente, o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. Dados do Sistema Nacional de Políticas Penais apontam mais de 670 mil pessoas encarceradas. Se contarmos a turma que está no semiaberto, prisão domiciliar ou usando tornozeleira eletrônica, o número passa de 900 mil (quase 70% são pessoas negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública). É um número que cresce ano após ano e que, aparentemente, não está fazendo ninguém “aqui fora” sentir-se mais seguro ou segura.
Não preciso pensar muito para identificar um monte de gente que poderia se beneficiar (e beneficiar a sociedade) a partir de uma anistia. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, em 2025, havia mais de 100 mil réus primários presos com pequenas quantidades de drogas, sem armas e sem envolvimento com organizações criminosas.
Em 2024, o Ipea estimou que até 35% dos réus por “tráfico” portavam quantidades compatíveis com uso pessoal; aplicando critérios objetivos (ausência de violência e de arma), até 8,2% dessas pessoas poderiam ser consideradas usuárias. Estando nas ruas, além de poder participar ativamente da vida em sociedade, ainda fariam com que o Estado economizasse até R$ 2 bilhões por ano caso não estivessem presas.
Lembrando que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, ao menos no caso da maconha, que pessoas portando até 40g da planta não deveriam mais ser condenadas por tráfico.
Se a gente faz um recorte de gênero, o negócio fica ainda mais grave. O Infopen Mulheres mostra que até 62% das mulheres encarceradas perderam a liberdade por crimes relacionados ao tráfico. De acordo com o World Female Imprisonment List, muitas delas são mães e principais cuidadoras. Com certeza absoluta seriam mais úteis ao país se pudessem estar junto de seus filhos e filhas.
Até aqui eu só estou falando de anistia, viu? Mas poderia muito bem trazer também a quantidade de gente que está em prisão provisória (21% da população carcerária em 2024, de acordo com o CNJ) ou mesmo as dezenas de milhares de pessoas que já cumpriram suas penas e seguem privadas de liberdade.
Pensar nessas pessoas e em suas famílias só me entristece. É gente demais, sofrimento demais, justiça e reparação de menos. São pessoas cujas ausências fazem falta a suas famílias. Pessoas cujas vidas são marcadas para sempre por um sistema sobrecarregado e violento.
Para elas, a anistia é urgente. E este debate é definidor sobre o rumo que a sociedade deve seguir. Se em nosso horizonte está a solidariedade, o bem viver para todas as pessoas e a comunhão com a natureza, talvez estejamos no caminho errado.
Uma nação justa e soberana, que tem nos direitos humanos o elemento central nas suas decisões, precisa urgentemente fazer com que a anistia penal (ou mesmo a justiça restaurativa) chegue com força às prisões brasileiras.
É uma pena, portanto, que o assunto venha à tona agora, a partir do desejo de um ex-presidente e de um punhado de generais se livrarem da responsabilização após terem tentado um golpe de Estado.
No caso da baderna do 8 de Janeiro de 2023, 1.190 pessoas foram responsabilizadas pelo STF. Metade delas assinou acordos com a PGR para suspender o processo em troca de penas alternativas. Algumas aceitaram restrições de direitos (não usar redes sociais, pagamento de multas, etc.). As demais, não as excluiria de uma possível anistia caso tenham disposição para pedir desculpas e entregar os mandantes da trama.
Para quem planejou, bancou e ordenou os eventos que começaram meses antes, me parece que a privação de liberdade segue fazendo muito sentido.