A Lei nº 4.645, sancionada no último dia 15 de setembro de 2025, pelo governo do Acre, de autoria do deputado estadual Edvaldo Magalhães (PCdoB), que regulamenta a extração e o transporte de plantas usadas na produção da ayahuasca (mariri e chacrona), marca um esforço para conciliar a preservação das espécies nativas com o crescimento de seu uso fora das comunidades originárias. A nova legislação busca equilibrar a liberdade de crença com a necessidade de proteção ambiental, reconhecendo a importância cultural e espiritual da bebida.
Para entender os bastidores dessa medida, conversei com Eufran Ferreira do Amaral, pesquisador da Embrapa Acre, um dos profissionais que ajudou na elaboração do texto da lei e frequentador da Casa de Jesus Fonte de Luz, uma religião ayahuasqueira conhecida popularmente como Barquinha, fundada pelo mestre Daniel Pereira de Mattos, que se uniu às linhas do Daime, fundada pelo mestre Raimundo Irineu Serra, e da UDV (União do Vegetal), do mestre José Gabriel da Costa, para tratar esse tema que nasce do encontro da cidade com a floresta.

Segundo o pesquisador, o principal objetivo da lei não é restringir o uso ritualístico, mas sim combater um problema grave: a comercialização ilegal dos insumos em grande escala e, por consequência, do chá pronto.
A percepção do aumento do transporte da matéria-prima foi o que motivou a necessidade de uma lei. “A gente percebeu que havia um movimento muito maior de insumos do que seria para um uso ritualístico de alguns centros na área urbana e que a regulamentação que existia não tinha a força necessária para coibir essas ações”, afirma o pesquisador.
Para Eufran, o foco da lei é mitigar uma possível venda ilegal da medicina e coibir o que foi identificado como extração e uso irregular da matéria-prima e da própria bebida.
“A lei representa um passo importante para garantir o uso cultural e ritual com manejo legal do cipó e da folha por comunidades ayahuasqueiras, uma vez que as religiões têm buscado a autossustentabilidade com seus plantio e têm a conservação e o reflorestamento como parte fundamental da evolução espiritual do ser humano e da busca pela paz universal”, reforça o pesquisador.
Como funciona?
A lei estabelece um regime de licenciamento simplificado, dividido em três categorias, dependendo do volume de material: “Reduzidíssimo”, “Reduzido” e “Baixo”. A regulamentação não afeta as comunidades indígenas que utilizam a ayahuasca, uma vez que elas não realizam o transporte em larga escala que a lei visa controlar.
“A decisão não prejudica nenhuma comunidade indígena”, esclarece Amaral, que reforça que o alvo são as igrejas e os centros em áreas urbanas, que, por sua vez, precisarão comunicar ou ter uma autorização para o transporte dos insumos.
Veja as classificações:
Impacto Reduzidíssimo: Este nível de licenciamento permite a grupos informais colher até 150 kg de cipó e 60 kg de folhas a cada 120 dias, sem a necessidade de uma pessoa jurídica. A notificação ao Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) pode ser feita de forma simples, por e-mail.
Impacto Reduzido: Para volumes entre 150 kg e 500 kg de cipó e até 150 kg de folhas, é exigido que os responsáveis se identifiquem e se registrem no órgão ambiental. O não cumprimento dos limites estabelecidos pode levar à apreensão tanto das plantas quanto dos veículos utilizados.
Impacto Baixo: Destinada exclusivamente a entidades religiosas que estejam devidamente cadastradas no IMAC, essa categoria autoriza a extração de até 1.000 kg de cipó e 300 kg de folhas a cada seis meses.
A preocupação de Amaral com o uso deturpado e ilegal dessa medicina tradicional indígena ressalta uma distinção crucial. Enquanto para os povos originários e as religiões ayahuasqueiras a bebida é parte de um saber ancestral e de um rito de cura, o crescimento exponencial do seu uso em centros urbanos, inclusive para fins não religiosos, têm levado à exploração da floresta e da cultura. A lei busca separar o uso tradicional, que é visto como um patrimônio imaterial, do uso comercial, que pode gerar uma extração predatória e desordenada do cipó e das folhas e a venda ilegal do chá.
A tensão entre a proteção do saber tradicional e o novo contexto urbano é complexa, mas a lei do Acre foi formulada com a ideia de servir como uma barreira para proteger não apenas a natureza, mas também a integridade espiritual e cultural da ayahuasca contra a sua mercantilização em larga escala.

Precedente para políticas públicas
Essa iniciativa do Acre pode se tornar um marco para outros estados brasileiros ou até mesmo para países que enfrentam desafios semelhantes. Ao criar um modelo regulatório que diferencia o uso tradicional e de pequena escala do uso massivo e comercial, a lei serve de precedente para futuras políticas públicas. A lei tenta demonstrar que é possível encontrar um caminho entre a fiscalização necessária para a conservação e o respeito às práticas de fé e rituais que dependem diretamente da floresta.
Claro que a implementação não será isenta de desafios. O IMAC, órgão ambiental responsável pela regulamentação, terá a tarefa de monitorar de perto o transporte da matéria-prima e assegurar que as normas sejam cumpridas. Será necessário desenvolver um sistema eficiente e transparente para que as comunidades e os centros religiosos possam obter as licenças sem burocracia excessiva, ao mesmo tempo em que a fiscalização coíbe as atividades ilegais. É um processo complexo, que exigirá diálogo e ajustes contínuos para garantir que a proteção da ayahuasca seja efetiva e justa para todos os envolvidos.
Segundo Eufran, indígenas não aldeados também não precisam se preocupar, porque há um entendimento entre os relatores da lei de que esses casos se enquadram na categoria de volume material “Reduzidíssimo”, por serem comunidades pequenas, bastando um simples esclarecimento em caso de fiscalização.
Questionado sobre a importância de envolver os povos indígenas em todas as discussões referentes à ayahuasca, independente dos seus impactos diretos nas comunidades indígenas, o pesquisador relembrou que a lei é uma “extensão” de uma resolução já existente e que há em curso a previsão de uma ampla consulta sobre o tema para tratar do tema que ficou conhecido como processo de Patrimonialização da Ayahuasca.
O próprio reconhecimento da ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é um passo que alguns agentes políticos acreditam ser importante para a salvaguarda da tradição. Porém, a ampla consulta aos povos indígenas ainda está em fase de viabilização e não se sabe ao certo qual a posição dos indígenas.
Lideranças com as quais a coluna conversou não demonstraram grande entusiasmo com a possibilidade de tornar a ayahuasca um patrimônio cultural brasileiro, porque entendem este saber como algo que antecede a criação do país e que esse movimento poderia enfraquecer a luta por reconhecimento amplo da ayahuasca como uma tradição indígena, podendo minar os esforços contra argumentos que dizem que “a ayahuasca é do planeta”. Mas esse é outro papo.
* Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.