Andar a noite em Uagadugu, a capital de Burkina Faso, é cruzar com rotatórias preenchidas pelo povo, os chamados roindpoints. Maioria homens e jovens, os cidadãos chegam todos os dias às 17h e permanecem até as 5h da manhã do dia seguinte. Compartilham alimentos, o chá, e recebem doações de quem passa em solidariedade. Em todas as 45 províncias do país, estão atentos a qualquer movimento estranho, barulho, briga, ameaças, os carros que passam. Tudo para proteger o novo presidente, a quem consideram a “reencarnação” de Thomas Sankara.
Amadé Maiga, da coordenação nacional das Associações de Vigilância Cidadã (CNAVC), conta que a vigília iniciou no mesmo dia da última tentativa de golpe de Estado contra seu país, em abril. “Ibrahim Traoré é um presidente que atende o povo, é um presidente que todos sabem que, em relação a esse presidente, nós vamos ter uma liberdade total”, relata.
O “grande complô” destinado a “semear um caos total” em Burkina Faso foi desarticulado pelo governo de Ibrahim Traoré após uma mobilização massiva. O Ministro da Segurança, Mahamadou Sana, anunciou na época que líderes desta desestabilização estariam baseados na Costa do Marfim, cujo governo do presidente Alassane Ouattara é aliado aos interesses da França na região. “Os cérebros em fuga fora do país estão todos localizados no país vizinho”, declarou Sana em anúncio na TV estatal do país, a RTB.
As vigílias populares são apenas uma das forças cidadãs de apoio à revolução em curso hoje no Sahel que está presente no nosso novo documentário, Sahel: Pátria ou Morte, lançado na última terça-feira (16), dia em que foi celebrado a aniversário de dois anos da Aliança dos Estados do Sahel (AES). O filme também já chegou ao Youtube do Brasil de Fato, e está disponível neste link.
Com apoio da Assembleia Internacional dos Povos (AIP), o filme apresenta os pilares que sustentam “a independência real” desses países e é fruto de duas viagens deste repórter à região, sob a proposta de desmistificar a propaganda francesa, apresentada em veículos hegemônicos, de que Burkina Faso, Mali e Níger passam por processos autoritários e sem suporte popular.
Nós alegra o fato deste nosso esforço de produzir este filme tenha começado a colher frutos em torno de dois objetivos: contribuir com as lutas populares em curso nesta região e tornar a revolução conhecida na América Latina.
A avaliação de Ibrahima Kebe, do Mali, coordenador da Escola Modibo Keïta, nos motiva. “Quando eu vi o filme, fiquei surpreso com a qualidade, não só das imagens, mas da concepção. E eu constatei que esse filme retrata exatamente a realidade”, afirmou Kebe, um dos 23 entrevistados pela produção do documentário.
Sob articulação dos movimentos populares, o aniversário da AES foi celebrado também em diferentes regiões do mundo nesta semana. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) promoveram, em São Paulo (SP), uma série de atividades com lideranças populares do Sahel, como Kebe, que vieram ao Brasil para partilhar a experiência revolucionária de seus países.
Uma das agendas foi a noite Sahel em Luta, onde Sahel: Pátria ou Morte foi exibido. Com a casa lotada, o público assistiu o filme, conheceu o novo dossiê do Instituto Tricontinental sobre o Sahel, e pode escutar e debater com os convidados vindos do Sahel.
Outra agenda de destaque foi o primeiro encontro de parlamentares brasileiros com essas lideranças. Ao traçar um plano de solidariedade parlamentar, e pensar caminhos em que o Brasil possa contribuir com as lutas anti-imperialistas, a reunião selou uma promissora união da diáspora com a revolução mais promissora do continente africana.
A deputada estadual Rosa Amorim (PT-PE) destacou que o Sahel hoje “é uma preocupação internacional” e é preciso construir uma solidariedade global para as lutas da região. Ela destacou a iniciativa do MST de receber lideranças desses países em acampamentos e assentamentos do movimento. “Construir e estreitar os nossos laços, entre os países de África e o Brasil, é resgatar nossa própria história. Tivemos um apagamento histórico dessa relação”, colocou.
Voltando ao apoio popular a essas revoluções, que acho importante reforçar por aqui, além de proteger Traoré nas vigílias, o povo burkinabé contribui financeiramente para a revolução em curso no país. O Fundo de Apoio Patriótico envolve todos hoje: das classes populares às mais ricas do país. “O governo faz um balanço a cada três meses. São milhões que as pessoas doam voluntariamente”, explicou no documentário o multiartista burkinabé .
A relação com o passado revolucionário de Thomas Sankara é explícita e eleva o apoio do povo. Assim como na década de 1980, Ibrahim Traoré mais uma vez nacionalizou reservas de ouro, articula medidas para se desvincular da moeda francesa, o franco CFA, e coloca em prática um audacioso plano de industrialização e expansão agrícola.
A entrevista que trouxemos com Valentin Sankara, irmão do histórico líder burkinabé, ilustra bem este cenário. Aposentado, ele contribui voluntariamente com a manutenção do espaço do Memorial Thomas Sankara, um espaço de memória criado por Traoré para celebrar o legado de seu mártire. O irmã de Sanjara vê hoje no país a retomada da Revolução Democrática e Popular (RDP) iniciada por seu irmão em 4 de agosto de 1983, há 42 anos.
“É claro. Vocês veem as realizações que estão sendo concretizadas hoje em Burkina Faso, isso mostra que ele [Traoré] é sincero. Não é ‘eu vou fazer’, ‘eu vou’, não, são coisas concretas. Vocês veem, há obras por toda parte, estamos construindo ali, colocando os blocos, os paralelepípedos, não poderíamos pedir algo melhor. Se você pode fazer, se você pode realizar algo e realmente prova isso, as pessoas vão aderir sem questionar. É assim que funciona. Hoje, as pessoas estão prontas para contribuir para o desenvolvimento do país. Isso é visível. Não é invenção, são coisas concretas”, disse Valentin na nossa entrevista, em frente ao memorial.
No caso do Níger, em relação ao suporte popular, a sinergia do povo com os militares não é a mesma observada durante a Conferência de Niamei, em novembro de 2024, segundo Mamane Adamou, líder histórico da esquerda nigerina. Mas ele assegura, em entrevista que trouxemos por aqui, que as dissidências não chegam a ser ecoadas por uma parcela significativa da população.
É uma “classe média intectualizada”, segundo ele, que se afasta e critica os novos líderes militares. O povo mais pobre ainda segue ao lado de Tchiani. E isso é explicado, segundo Adamou, pelas medidas voltadas à população, como a baixa do preço dos alimentos.
O Níger, inclusive, é colocado pelo Banco Mundial como a economia que mais vai crescer na África em 2025. Adamou, porém, vê com ceticismo esse dado, e analisa que é um movimento natural após os fim das sanções da Cedeao. O líder popular defende, inclusive, o fim das relações com o banco e com o FMI.
Há um outro ponto fundamental que esses governos se alinham hoje que é fundamental para a continuidade das revoluções: a garantia da soberania alimentar. O desenvolvimento agrícola no Níger, por exemplo, é observado na expansão da área irrigada, especialmente nas principais regiões agrícolas, como Dosso e Tillabéri. É um indicativo que há caminhos viáveis para tornar a agricultura viável em uma das regiões mais afetadas pela seca e as mudanças climáticas a nível mundial .
No caso de Burkina Faso, a Ofensiva Agrícola lançada por Ibrahim Traoré é um dos carros chefe para a manutenção da relação orgânica e afinada entre o governo e a população. No país, 80% vive no meio rural. Como diz Ocean no documentário , “o povo sem terra é um povo escravo”.
Luc Damiba, conselheiro especial do primeiro ministro de Burkina Faso, elenca os três objetivos principais do programa: garantir que os camponeses produzam o suficiente para se alimentar; e torná-los atores políticos importantes para a continuidade da revolução. E dar segurança para que as famílias camponesas não sejam mortas ou cooptadas pelo terrorismo. “Só podemos contar com os camponeses para fazer a revolução”, explica Damiba.
A população de Burkina Faso garante que o esforço da AES contra o terrorismo tem dado resultado, principalmente na capital Uagadugu. No Grande Mercado da capital, criado por Thomas Sankara, o medo de um atentado foi ficando para trás. Mostramos em Sahel: Pátria ou Morte que o maior espaço de venda de produtos e alimentos está cheio, repleto de vendedores animados com a atual situação do país.
A nova fase da guerra contra o terrorismo para a AES envolve uma luta por drones e a necessidade de monitoramento por satélite. A parceria com a Rússia e a Turquia tem sido essencial nessa reestruturação. Mas Damiba conta que essa relação mais próxima com os países do Brics não afeta a soberania do país. “Somos maduros para fazer negócios com quem quisermos. Somos soberanos”, diz.
Com relação à cobertura do Brasil de Fato até aqui, acredito que o futuro da “revolução patriótica” permeia duas tarefas importantes. A primeira é colocada novamente por Adamou no bloco final do documentário: é preciso zelar pelas desigualdades internas.
“Nós queremos nossa autonomia, nossa libertação nacional, mas isso vai depender da questão social. Se as classes populares são fortalecidas, o processo vai continuar”, destacou o líder nigerino.
Um outro é o desafio de regionalizar a revolução, como nos conta o pan-africanismo proposto por Kwame Nkrumah e cujas ideias foram reunidas no livro de Vijay Prashad, lançado pela Expressão Popular.
O professor Muryatan Barbosa, da Universidade Federal do ABC, vê hoje o Sahel permeado por uma revolução parcial, que enfrenta caminhos difíceis para se expandir para todo o continente. Ele não vê Traoré com uma capacidade e poder do líder líbio Muammar Gaddafi , o último mártir da união africana morto pelas forças imperialistas da Otan.
A solidariedade internacional é a solução apontada por todos como um caminho necessário. O apoio dos movimentos aponta para essa direção. As próprias lideranças que trazemos no filme, como o professor Philippe Noudjènoumè, liderança do Partido Comunista do Benin e presidente da Organização dos Povos da África do Oeste (WAPO) convoca nós latino-americanos, e todos que lutam pela paz mundial, para caminhar junto nessa empreitada.
Eu finalizo com Noudjènoume, com sua tocante mensagem: “A África também fará parte desse movimento ascendente em direção a um bem-estar maior, em direção ao humanismo, digamos, geral, em direção ao sentimento de que todos os homens são iguais em direitos e deveres”.
Bom documentário!