Neste ano de 2025, o Brasil celebra o centenário de Inezita Barroso, e homenageá-la é muito mais do que lembrar uma grande cantora. Inezita foi uma das mais importantes geógrafas da nossa cultura. Enquanto os mapas oficiais mostram rios, cidades e fronteiras, o mapa que Inezita desenhou para o Brasil foi feito de sons, ritmos e sotaques. Com sua viola e sua voz, ela revelou um país que muitas vezes o próprio Brasil insistia em ignorar: o Brasil profundo, popular e do interior.
A obra de Inezita foi um grandioso trabalho de mapeamento sonoro. Ela não se contentava em ser uma intérprete da capital; ela foi uma pesquisadora que viajou pelo país para registrar a catira, o cateretê, o cururu, a moda de viola e dezenas de outras manifestações. Cada canção em seu repertório era um ponto geográfico, um testemunho de como a cultura de um povo nasce da sua relação com a terra, com o trabalho no campo, com as festas e com a fé. Ela nos ensinou que a cultura brasileira não era uma coisa só, mas um arquipélago de tradições vivas.
Para entender a dimensão de Inezita Barroso, é útil traçar um paralelo com outra gigante do nosso continente: a argentina Mercedes Sosa. Assim como ‘La Negra’ se tornou a voz da América Latina ao dar vida às canções dos oprimidos e às tradições dos Andes e dos pampas, Inezita se tornou a voz do Brasil profundo. Ambas foram cantoras-folcloristas, artistas que compreenderam que sua missão ia além do palco. Elas eram guardiãs da memória, pesquisadoras que garimpavam a alma de seu povo nas melodias e versos anônimos do interior. O que Mercedes fez pela cultura argentina, Inezita fez pela cultura caipira e sertaneja, conferindo-lhe um lugar de honra no panteão da identidade sul-americana.
Essa atitude era, em si, um ato de resistência contra o esmagamento cultural promovido por um país que historicamente valorizou o litoral em detrimento do sertão. A geografia brasileira sempre foi marcada por essa tensão: de um lado, as metrópoles litorâneas, abertas às novidades de fora e exportadoras de uma imagem de um Brasil urbano e moderno. Do outro, um vasto interior, guardião de saberes e tradições. Inezita escolheu o seu lado. Ela deu palco, luz e dignidade a esse Brasil interiorano, mostrando que sua cultura era tão rica e complexa quanto qualquer outra.
Seu programa Viola, Minha Viola foi, por mais de 30 anos, um território de afirmação dessa geografia cultural. Em meio a uma programação televisiva que massificava gostos e tendências, o programa de Inezita era um espaço conquistado, uma ilha de diversidade. Ali, artistas de rincões de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Goiás e de todo o país, encontravam um porto seguro. Ela transformou a tela da TV em uma praça do interior, onde a autêntica música popular brasileira podia se manifestar sem pedir licença.
Celebrar os 100 anos de Inezita Barroso é celebrar a soberania cultural do nosso povo. Seu legado nos lembra que um país só é verdadeiramente independente quando conhece e valoriza a geografia real de sua gente. Em um mundo cada vez mais homogêneo e digital, a voz de Inezita continua a ecoar como um chamado: não se esqueçam de onde viemos, não se esqueçam do chão que pisamos. Sua música não é apenas arte; é um documento, um mapa afetivo e um pilar da identidade brasileira.