Os grandes protestos que tomaram as ruas do Nepal no início de setembro, e que resultaram na queda do governo de Khadga Prasad Oli, não podem ser compreendidos apenas como uma revolta “da geração Z”, apesar da forte presença da juventude. Essa leitura, segundo o editor e analista de geopolítica Hugo Albuquerque, é uma “construção ocidental, em especial da mídia britânica, que tenta criar uma oposição entre jovens e governo, como se fosse um levante neutro e sem contexto histórico”.
Ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato, Albuquerque indica que havia razões concretas para o descontentamento. “Havia uma insatisfação popular fundada na incompetência do governo, na incapacidade de ele promover reformas sociais, promover o desenvolvimento econômico”, lista. No entanto, ele alerta para a responsabilidade de potências externas. “Isso não exclui o papel do imperialismo, que tinha relações históricas com a monarquia derrubada em 2006. Essa corte nepalesa tinha uma relação carnal com o imperialismo britânico e depois com o anglo-americano”, diz.
O analista desmente ainda o papel das redes sociais na mobilização contra Oli. “O estopim, pelo menos apresentado mundialmente, foi que o governo teria proibido as redes sociais. Mas a verdade é que ele exigia que elas tivessem escritório [local] e se registrassem, como qualquer multinacional. O argumento da censura é mentiroso”, afirma.
Situado entre os dois países mais populosos do mundo, o Nepal vive sob a sombra das rivalidades regionais. “O Nepal é muito dependente da Índia, governada há mais de dez anos pela extrema direita de Narendra Modi, e ao mesmo tempo tem relações com a China, o que gera pressões constantes”, explica o especialista.
O novo governo interino é liderado pela jurista Sushila Karki, ex-presidente da Suprema Corte. Segundo Albuquerque, ela é “uma figura progressista, apoiada pelos militares e vista como alguém capaz de estabilizar o país temporariamente”. Mas sua permanência é improvável. “Ela vai permanecer até acalmar a situação e convocar novas eleições”, indica.
O futuro em disputa
Para Hugo Albuquerque, a crise revela tanto os limites da experiência republicana quanto a incapacidade da esquerda nepalesa de oferecer alternativas. “Nesses quase 20 anos de governos em tese de esquerda, não se conseguiu melhorar a qualidade de vida da população. Um terço do PIB [Produto Interno Bruto] depende de remessas de migrantes que vivem em condições precárias no exterior. O erro foi não ter avançado em direção a uma democracia popular. No caso nepalês, a democracia burguesa não reserva outra coisa senão a miséria”, aponta.
O analista alerta, por fim, que “há uma irritação popular com os partidos comunistas, que estão fragmentados”. “O Nepal precisa de um governo comunista de verdade, não um comunismo pró-forma que administre o capitalismo dependente. Se não houver uma alternativa popular forte, o Nepal pode se tornar uma cabeça de ponte do Ocidente para desestabilizar Índia e China. O futuro é muito preocupante”, opina.
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.