Soaram os alarmes: o Equador desliza para o autoritarismo. Embora seja uma tendência que vem de algum tempo, essa reação — tanto no âmbito interno como de organismos internacionais — responde ao assédio governamental contra a Corte Constitucional (CC) e à recente tentativa de ignorá-la.
A razão: a decisão desse organismo de acatar as demandas de diversos juristas e coletivos cidadãos que questionaram a inconstitucionalidade de leis de urgência impulsionadas pelo Executivo, as quais ele considera como ação obstrucionista. E por ser vista como obstáculo, decide passar por cima dessa entidade de controle para convocar diretamente uma constituinte, movimento que por ora está empacado.
O presidente Daniel Noboa, filho de um magnata bananeiro, iniciou um novo mandato em 24 de maio, sem ter esclarecido a legitimidade de sua eleição, devido à recusa em realizar a recontagem das urnas. Nessa linha, pretende que tal eleição lhe dê carta branca para assumir o poder total e, assim, contornar e atropelar leis e regulações democráticas que lhe são incômodas.
A questão de fundo é que, no início de seu primeiro mandato, Noboa articula um regime de fato cívico-militar de corte autoritário, com um roteiro que lembra a ditadura de Fujimori no Peru, para reverter as transformações sociopolíticas e econômicas alcançadas durante o governo da Revolução Cidadã, presidido por Rafael Correa, instrumentalizando a crise da insegurança para que os militares intervenham na vida interna do país.
Um projeto corporativo
Noboa não chega à presidência em 2023 pelo respaldo de um acúmulo eleitoral, mas pelo impacto e manipulação de um fato que alterou a campanha: o assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio, cuja autoria o Ministério Público, sem provas, atribuiu ao “correísmo”, bloqueando assim a possibilidade de uma vitória que se projetava firme.
Por isso, desde o primeiro momento, o mandatário busca a todo custo construir uma base de apoio e, em consonância, forjar mediaticamente sua imagem de líder capaz de influenciar o cenário político como opção de um projeto de longo prazo, que as elites pretendem consolidar sob o controle alcançado diretamente no Executivo.
Na essência, trata-se de um governo do grupo Noboa, economicamente o mais poderoso do país, pois, além de fornecer os principais quadros da administração, constitui o fator aglutinador para impulsionar esse projeto, que aponta para uma restauração oligárquico-empresarial, militarizada, com certos ares monárquicos, em consonância com os delírios de grandeza do presidente.
Com tal propósito, no centro de sua proposta está o desmonte completo da Constituição de 2008, que define o país como um “Estado constitucional de direitos” a partir das bandeiras de luta levantadas por organizações sociais ao longo de décadas para avançar rumo a uma democracia participativa. Objetivo que as elites perseguem desde que Lenín Moreno, após sua deserção da Revolução Cidadã (2017), deu um giro político e passou a implementar o programa da direita.
Com Noboa, busca-se um aperto completo de torniquetes com respaldo social. Baseado em sua força no manejo comunicacional, especialmente das redes sociais digitais, configura um governo que se sustenta por meio de uma campanha midiática permanente focalizada no tema de maior sensibilidade do país: a insegurança.
Após o combate, a insegurança
Nos últimos anos, o Equador passou a se tornar o país mais inseguro da região, quando durante o governo de Rafael Correa era o contrário. Com o posterior giro neoliberal, registrou-se um aumento gradual da violência devido à expansão das redes ligadas ao narcotráfico, que encontraram terreno fértil para penetrar no tecido social diante do abandono estatal, resultante do encolhimento do Estado e da consequente retirada de políticas sociais.
Para o circuito do narcotráfico, o Equador sempre foi a peça de corredor para a droga produzida na Colômbia e no Peru, destinada ao exterior através de seus portos marítimos. Mas, a partir da dolarização, tornou-se uma praça-chave para a lavagem de dinheiro ilícito nos mais diversos planos e lugares, com grande repercussão na própria vida econômica.
Como o encolhimento do Estado também reduziu os organismos de controle, a ação criminosa recrudesceu a tal ponto que ameaça a convivência social. Nesse contexto, ao focalizar-se na insegurança, a campanha de imagem do governo alcança impacto significativo, sobretudo desde a declaração de “conflito armado interno” (09/01/2024) para enfrentar a delinquência.
Essa medida abriu caminho para a presença militar nas ruas que, além do efeito dissuasivo e de modular o medo, tornou-se eixo político para projetar a imagem do mandatário, já que ele capitaliza o reconhecimento que as Forças Armadas ainda preservam em meio ao descalabro institucional generalizado, a ponto de um amplo setor da sociedade inclusive enxergar uma ditadura como saída.
Além disso, essa disposição converte-se na chave-mestra para atuar acima da Constituição e das leis, com o uso e abuso de declarações de estados de exceção, sem qualquer controle. Salvo, à época, reações pontuais no parlamento — sistematicamente desprezado pelo Executivo — e timidamente da Corte Constitucional.
Assim, mais que atacar as causas estruturais, a resposta se concentra na militarização do país e em um sistemático corte de direitos, sobre os quais constrói narrativas em torno da imagem do “homem de mão dura”. Embora o governo sustente que dispõe de um suposto “Plano Fênix” para esse combate, mais do que resultados tangíveis prevalece a difusão de encenações filmadas de operações centradas no impacto midiático.
Tanto é assim que, embora o envio e a lavagem de drogas ao exterior figurem entre os pilares do negócio ilícito, não se registra ação alguma contra banqueiros ou exportadores de bananas — setor de onde partem os principais carregamentos. O cenário escolhido encontra-se nos setores sociais empobrecidos, com ações que mais parecem disciplinamento social, quando não limpeza, devido à ampla discricionariedade conferida aos militares.
A institucionalidade fincada no ódio
Como essa instrumentalização do problema da insegurança gera resultados favoráveis para a tão desejada popularidade, aproveitando as expectativas que desperta, Noboa opta por convocar uma consulta popular (21/04/2024) com perguntas desnecessárias (redundantes em relação ao marco legal vigente), mas escolhidas para alcançar uma resposta favorável.
Assim como gastou recursos excessivos para realizar essa consulta inútil em meio à grave crise econômica, o mesmo ocorre quando ordena a invasão da Embaixada do México em Quito, fato que teve repercussão internacional por violar normas do direito internacional. Ainda assim, é fato que essa ação lhe rendeu alguns pontos a mais nas pesquisas de opinião.
Essa estratégia centrada na captação de simpatias apoia-se em um ingrediente-chave: o ódio, que, ao exaltar emoções, ofusca a razão e transforma adversários em inimigos. Trata-se, na verdade, de uma tática já aplicada no governo de Lenín Moreno, com o objetivo de “descorreizar” o país, mas que agora é levada ao extremo.
Vale lembrar que, em fevereiro de 2018, Moreno promoveu um referendo para reformar a Constituição, o qual deu lugar à instalação de um Conselho de Participação Cidadã e Controle Social transitório. Na sua gestão ocorreu um verdadeiro “golpe judicial”, quando esse conselho se autoconcedeu poderes além do que o referendo estipulava, para reestruturar os órgãos de controle do Estado, após a depuração de autoridades e funcionários considerados “correístas”.
Esse novo arranjo institucional foi armado basicamente para arrasar a ordem democrática sustentada pela participação popular e, assim, bloquear qualquer possibilidade de que essa situação se repetisse. Junto com a perseguição apoiada pelo lawfare, desencadeou-se uma avassaladora ofensiva ideológica para semear o ódio e o medo, principalmente contra o correísmo, com a ativa participação do establishment midiático.
Agora, além da intensificação dessa ofensiva, soma-se uma nova estratégia: associar ao narcotráfico todos aqueles que manifestam discordância ou inconformismo. Com essa polarização entre o bem e o mal, combinando ódio e medo, busca-se fabricar a liderança de Noboa como expressão do “bem” e, a partir daí, construir uma força política hegemônica para os próximos tempos.
Sob a imposição do “vale tudo”
Nessa perspectiva, o mandatário se ampara na corrente “anticorreísta” e, com o aparato governamental, passa a montar seu próprio movimento: Ação Democrática Nacional (ADN) — sigla também interpretada como “Adquiridos por Daniel Noboa”, pois se compõe basicamente de políticos cooptados ou oriundos de outras siglas, sem identidade ideológica.
De fato, pretende inaugurar uma nova etapa política, deixando os partidos para trás, com uma organização baseada em seguidores em torno de sua figura como um grande “influencer” das redes sociais, especialmente no TikTok. Nesse campo, vem consolidando sua força através de um robusto enxame de trolls que servem de pilar ao aparato propagandístico, sustentando e amplificando sua campanha permanente, intensificada em períodos eleitorais. Daí a instrumentalização das consultas populares, ao custo de sua degradação.
Com essa lógica, busca deslocar a política para o mundo virtual, onde o debate democrático praticamente desaparece diante da predominância de memes e fake news. Ao mesmo tempo, a ética na política evapora, pois o “vale tudo”, os discursos de ódio e as mentiras tornam-se consubstanciais a uma gestão centrada na manipulação do relato, mais do que na realização de obras concretas.
Para isso, um punhado de especialistas em manipulação da opinião pública, com o respaldo de algoritmos, inteligência artificial e afins, atua permanentemente para manter a iniciativa, aplicando doses calculadas de otimismo ou revertendo situações adversas, desviando responsabilidades para os opositores ou lançando distrações.
“A culpa é de Correa” é a frase recorrente — e inevitável — nos discursos do presidente, que se caracterizam por serem escassos, muito breves (2–3 minutos), em estilo de sequência de spots com frases feitas que pouco dizem sobre sua gestão. No fundo, consistem em descargas de insultos para humilhar quem cruza seu caminho (com especial prazer quando se trata de mulheres).
Segundo seus defensores, esse recurso a falas curtas não se deve a limitações oratórias do presidente, mas seria a expressão futurista da comunicação na nova política. A lógica é que não precisa dar explicações porque toda decisão é uma ordem que exige obediência. Portanto, espaços de deliberação ou diálogo se tornam desnecessários: quem não se enquadra passa a ser considerado “inimigo”.
Eleições em campo inclinado
Com a reestruturação institucional iniciada pelo “golpe judicial” de 2018, estabeleceu-se um alinhamento tácito dos diversos órgãos em chave “anticorreísta”. Como se não bastasse, sob o atual governo há ainda maior pressão (com prebendas, chantagens, ameaças etc.) para garantir total subordinação ao presidente. E assim acontece: desde o início do processo eleitoral, cada instituição se curva para facilitar a reeleição do mandatário, como se fosse questão de Estado.
Sem respeitar os devidos procedimentos legais e constitucionais, Noboa faz praticamente o que quer durante a corrida eleitoral. Participa sem pedir a licença exigida, inventa a figura inexistente de “presidente-candidato”, destitui a vice-presidente sem base jurídica, anula a candidatura de seu principal concorrente na direita, envolve todo o aparato governamental e recursos públicos na campanha — apenas para citar alguns exemplos.
Ao mesmo tempo, usando o comodim da insegurança, promove uma intervenção aberta dos militares, especialmente em áreas rurais, com operações de intimidação, guerra psicológica, presença ostensiva em eventos de campanha e até utilização de quartéis como centros operacionais da autoridade eleitoral. Tudo isso reforça com imagens sua estratégia eleitoral. Na prática, os militares acabam atuando como benfeitores eleitorais do presidente.
Para completar, no dia das eleições não faltaram irregularidades de grande magnitude, denunciadas pela oposição como fraude monumental. Por isso, exigiram da autoridade eleitoral uma recontagem das urnas. Mas a solicitação foi negada, e o processo, repleto de vícios e múltiplos motivos para ser anulado, foi rapidamente validado.
Com lei ou sem lei, quem manda é o FMI e o Comando Sul
No início desse novo mandato, o governo conseguiu formar maioria parlamentar e, por essa via, busca aprovar as reformas que deseja impor através do envio de projetos de leis econômicas urgentes. Essa figura legal obriga o parlamento, no prazo máximo de um mês, a considerar projetos econômicos sobre um único tema enviados pelo Executivo.
O problema é que, sob esse mecanismo, o governo envia um projeto após outro, cada um com múltiplos tópicos e disposições conflitantes com a Constituição. E todos são aprovados sem maior debate, já que à bancada da Revolução Cidadã, mesmo com alta representação, é negado até o direito de palavra.
Sem programa para resolver as crises que afligem o país, a gestão do governo segue uma cartilha pautada pelas políticas do FMI, as diretrizes do Comando Sul dos EUA e os negócios para favorecer seu grupo corporativo e aliados. Em consonância, as leis propostas visam criar condições para cumprir esse roteiro.
Assim, seu tratamento se dá como medida de força, violando procedimentos, sem se importar que as disposições sancionadas afetem direitos e garantias constitucionais da população. Essa é a razão das múltiplas ações de inconstitucionalidade apresentadas à Corte Constitucional.
Esse órgão, que havia “olhado para o outro lado” durante o processo eleitoral, agora decidiu ouvir o clamor cidadão e tornou-se o novo inimigo do governo. Assim, em meio ao turbilhão de protestos sociais pelo aumento do preço do diesel, o Executivo resolveu acelerar a convocatória de uma constituinte sem o parecer da Corte Constitucional, em aberto desacato às disposições legais.
Embora, por ora, essa manobra esteja suspensa, o caminho autoritário do regime segue aberto. Mais além das ações de força, cabe destacar seu alinhamento com o FMI — cuja lógica é estruturalmente antidemocrática, pois suas medidas ampliam a desigualdade social — e com o Comando Sul, que inclui em suas receitas a “guerra de baixa intensidade” interna, com doses de ódio e medo para submeter a população.
E tudo isso sob o encanto das loas otimistas de um governo que se mantém à base de discursos vazios, com os militares em sua retaguarda.
*Osvaldo León, comunicólogo equatoriano, é integrante da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI).