Tive o privilégio de, em algum momento de minha juventude, ter sido aluno do nosso querido Severo Salles, na UNAM. Ele havia chegado ao México no início dos anos 1970, junto com os brasileiros da Teoria Marxista da Dependência, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra. Incorporou-se ao Centro de Estudos Latino-americanos (Cela) e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais, espaços acadêmicos da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) em que contribuiu até sua morte.
Com ele apreendi muita coisa. Ele era um professor exemplar. Rigoroso, disciplinado, mas também atencioso, cuidadoso com os estudantes. Sua personalidade introspectiva tem uma total aderência ao mundo cultural mexicano e à trajetória histórica da Unam. Severo era gentil, generoso e implacável na crítica materialista. Suas reflexões teóricas eram de total compromisso com a luta social.
Mas além de professor, Severo participava ativamente da vida militante no México, e das múltiplas atividades de solidariedade latino-americana. Discreto e humilde, sempre se animava e estimulava as lutas sociais, dando exemplo de um professor comprometido com a formação dos mais jovens.
Na universidade, se preocupava em pesquisar a situação socioeconômica de cada país latino-americano e caribenho, e a situação da luta de classes, ansioso pelas necessárias mudanças que o continente exigia. Severo formou toda uma geração de jovens latino-americanos, que buscavam o México como espaço de liberdade do pensamento crítico em meio às perseguições das ditaduras naquele período.
Tivemos o privilégio de tê-lo como professor em nossa Escola Nacional Florestan Fernandes, quando utilizou de um ano sabático de sua carreira para ministrar, para nós do MST, um curso de formação e de aprofundamento de O Capital, de Karl Marx.
A todos e todas encantava pela sabedoria e humildade.
Uma trajetória impressionante de professor e pesquisador latino-americano
O professor Severo Salles é, como tantos outros sujeitos da cena política brasileira dos anos 1960, um exemplo, hoje, de reconhecimento para fora e de apagamento para dentro, quando nos referimos aos grandes nomes do pensamento social brasileiro e latino-caribenho que continuam sem ser estudados e conhecidos no nosso país. Esta invisibilidade é um dos resultados mais perversos da violenta ditadura militar em nosso continente que, intencionalmente, apagou a contribuição daqueles que conseguiram se exilar antes que fossem assassinados.
A ditadura militar, e seus ecos que ainda ressoam, é violenta tanto pelas mortes e tiranias que consolida, como pelo processo histórico de romper canais de comunicação entre gerações que deveriam ser formadas pelo exemplo pedagógico de homens e mulheres comprometidos com o povo, como foi o caso de Severo.
Apesar de sua incorporação à Universidade Federal da Bahia como professor visitante nos anos 1980, e posteriormente como professor concursado (2000-2003), Salles tem uma vasta, densa e importante obra e trajetória que precisa ser estudada para o entendimento da realidade brasileira à luz da história da luta de classes.
Felizmente, no processo comemorativo dos 65 anos do Centro de Estudos Latino-Americanos, que estão sendo vivenciados com homenagens além de recuperação histórica e debates, Severo Salles foi homenageado, com um afetuoso e político discurso de seu par Lucio Oliver.
Sua trajetória acadêmica é interessante e está diretamente influenciada pelo papel político que a ditadura cumpriu na necessidade de novas rotas e trabalhos coletivos no exterior para os exilados. O momento histórico forja os sujeitos e os exige posição à luz dos acontecimentos de seu tempo. É assim que Severo transita das ciências exatas para as sociais/humanas.
Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade da Bahia, em 1963, sendo incorporado à nascente Universidade de Brasília (UnB) para contribuir na área de matemática e econometria. Com o golpe de 1964 e o exílio forçado, seu destino foi a França, país que o ofertou uma bolsa de estudos pelo Ministério das Finanças.
Severo integrou uma geração que discutia, promovia e produzia reflexões teóricas e políticas acerca dos dilemas do desenvolvimento e da relação direta entre este a democracia ou a ditadura. O exílio forjou, como não poderia ser diferente, um intelectual orgânico do povo. O professor Severo foi construtor e constructo do pensamento social latino-americano, que tem Dom Pablo Casa Nova, Sergio Bagu, Leopoldo Zea, André Gunder Frank, Lucio Oliver e os intelectuais da teoria marxista da dependência como grandes referências. Uma geração que entregou o melhor da reflexão e da sistematização acerca dos problemas do desenvolvimento capitalista e a necessária alternativa revolucionária continental.
O debate do desenvolvimento, forjado no encontro com diversos intelectuais mundiais no México, no período de 1970 a 2000, consolidou uma carreira acadêmica comprometida com a luta popular. Severo Salles é um importante protagonista do papel do intelectual orgânico na vida cotidiana da universidade e das lutas populares.
Entre as importantes temáticas estudadas ao longo do tempo, estão: a estrutura agrária brasileira e latino-americana; ditaduras, democracias e luta de classes na América Latina; Marx, Lênin e Rosa Luxemburgo. No debate da questão agrária brasileira insistiu que a terra como bem da natureza — e, portanto, não tendo valor —, ao ser transformada mercadoria, passava a ter preço, acumular capital e intensificava a dependência econômica, gerando uma desintegração das famílias camponesas, forçadas a migrar para as cidades em condições periféricas.
Seu legado exige de nós a perpetuação de um pensamento crítico voltado para as necessidades de transformação do nosso tempo. Esse baiano de alma mexicana nos deixou muito trabalho pela frente. Partiu, cumprindo seu dever de intelectual da classe trabalhadora latino-americana comprometido com sua libertação.
Salve, salve, Severo Salles!