Nesta semana, um grupo de 70 legisladores iranianos assinou uma carta pedindo pela mudança na doutrina de defesa do país para permitir a construção de bombas atômicas. O debate ocorre poucos dias após a reimposição de sanções da Organização das Nações Unidas (ONU) ao Irã por conta de seu programa nuclear e em um contexto do aumento das hostilidades regionais com Israel.
A carta, publicada pelo site de notícias estatal Fars, não foi endereçada diretamente ao líder supremo Ali Khamenei, que não pode ter suas ordens questionadas por outras autoridades. Em vez disso, foi dirigida aos membros do Conselho Supremo de Segurança Nacional, responsável pelo dossiê nuclear e que inclui o presidente, o Judiciário e os chefes do Parlamento.
Em 2003, Khamenei emitiu uma fatwa — ou decreto religioso — determinando a proibição do país usar armas nucleares. Uma fatwa pode ser revogada apenas por ele ou eventualmente algum substituto seu, mas os legisladores argumentam que a tal fatwa não proíbe tecnicamente a construção ou manutenção de bombas nucleares como forma de dissuasão.
Eles alertaram que Israel “chegou à beira da loucura”, “ataca sem respeitar quaisquer obrigações internacionais e mata pessoas inocentes”. Essa retórica se intensificou significativamente após os ataques surpresa de Israel ao Irã em junho, que desencadearam uma guerra de 12 dias e também viram Washington intervir em nome de Israel e bombardear as principais instalações nucleares do Irã.
Risco estratégico
“A dissuasão nuclear, que sempre foi recusada pelos iranianos, parece surgir como a única solução do país se defender de um novo ataque israelense [ou estadunidense], ao discutir isso publicamente, o Irã se expõe a um ‘ataque preventivo’ — mas é um risco que o Irã precisará assumir”, disse ao Brasil de Fato o analista de geopolítica Hugo Albuquerque.
No domingo, o Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã anunciou que a cooperação com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) está suspensa após a ação da França, Alemanha e Reino Unido de reimpor sanções internacionais.
As potências europeias, conhecidas como E3, continuam signatárias do acordo nuclear de 2015 entre o Irã e potências mundiais, que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, abandonou unilateralmente em 2018 e impôs sanções severas. Apesar da forte oposição da China e da Rússia, que também negociaram e assinaram o acordo nuclear de 2015, o E3 acionou o mecanismo de “retorno” do acordo histórico e garantiu uma votação no Conselho de Segurança da ONU na semana passada.
Todas as sanções da ONU suspensas como parte do acordo de 2015 serão restabelecidas até domingo, caso não haja um acordo decisivo com o Irã, o que parece improvável no tempo limitado que resta. No ano passado, o moderado Masoud Pezeshkian foi eleito presidente do Irã com uma proposta de reaproximação com o Ocidente para acabar com as sanções que afetam a economia.
“A sociedade iraniana com razão está preocupada, mas também está unida. Israel vilipendiou o direito internacional mais uma vez e atacou o país, sem preocupações com civis inocentes. A visão consensual no Sul Global é que as sanções econômicas, usualmente aplicadas para impedir projetos de armas nucleares, tornariam esses programas inviáveis”, diz Albuquerque.
O analista afirma que “passados mais de 30 anos da globalização, o fato é que Iraque e Líbia foram destruídos, mas a Coreia do Norte, não, ela optou pelo caminho mais difícil, só que foi aquele que garantiria que o país não seria invadido”.
“É claro, um país socialista consegue fazer isso, enquanto países capitalistas da periferia têm muito mais dificuldade e as ameaças econômicas sempre funcionaram. Com o Irã algo muda, porque a ascensão econômica da China e o Brics marcam uma alternativa. O risco, portanto, é estratégico”, completa.
Cautela
O chefe da Agência Internacional de Energia Atômica (AEIA), Rafael Grossi, declarou que a diplomacia sobre o programa nuclear do Irã está em um momento difícil. Teerã alega que a decisão europeia frustrou as negociações para retomar a supervisão da AIEA, suspensas após ataques de Israel e dos EUA às instalações nucleares iranianas.
O analista político Lejeune Mirhan fez duras críticas sobre a AEIA ao Brasil de Fato. “Essa agência é muito ruim. Seu presidente é um agente do imperialismo, o argentino Rafael Gross, que forneceu a lista de todos os físicos nucleares iranianos para os Estados Unidos e para Israel, que foram assassinados”, disparou.
Mirhan diz que apesar disso, o ímpeto iraniano de se afastar da AEIA diminuiu, mas que romper tanto com ela como com o tratado internacional de não-proliferação nuclear “vai propagar um sentimento que a mídia imperialista propaga de que eles, sim, querem a bomba e talvez até já tenham”.
“O Irã terá que ser muito cauteloso antes de tomar essas medidas drásticas de afastamento.”
Teerã defende há décadas que seu programa nuclear tem fins pacíficos, afirmação rebatida pelo Ocidente, que diz que Teerã busca desenvolver bombas atômicas.