A população LGBTQIAPN+ protagonizou intensa mobilização social e pressão institucional nas últimas décadas. Suas lideranças e movimentos sociais representativos enfrentaram, ao longo do tempo, violentas repressões promovidas por agentes do Estado, além de ataques sistemáticos por parte de instituições religiosas e setores moralmente conservadores. Todos sustentados por visões maniqueístas, que associam o “bem” à norma da cisheteronormatividade enquanto, simultaneamente, consideram qualquer modelo que se afaste desta, como “mal” e “inadequado” (Darde, 2009; Prado Rocha Rosa, 2020).
Durante a Revolta de Stonewall ocorrida em 1969, diversas manifestações foram realizadas espontaneamente após uma invasão policial ao bar Stonewall Inn, em Nova York. O episódio deu visibilidade à opressão e à marginalização vivenciadas pela comunidade LGBTQIAPN+ (em especial pelas mulheres transgênero negras e latinas), (Perroni et al, 2019), e foi um marco na criação das paradas e dos debates que ganharam força nas décadas seguintes.
A partir de 1990, governos nacionais e organismos internacionais passaram a discutir, de fato, a necessidade de criação de um arcabouço jurídico e institucional específico para estes grupos. Os Princípios de Yogyakarta (2006) é uma referência desta conquista.
Elaborado por especialistas de diferentes países, o documento estabelece vinte e nove normas de direitos humanos nas áreas de orientação sexual e identidade de gênero. Em conjunto com outras resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o documento inaugurou uma base para a compreensão do direito à identidade de gênero e à livre orientação sexual, orientando os Estados no desenvolvimento de políticas públicas e de compromissos em favor da dignidade da pessoa humana que faça parte dessa comunidade (CLAM, 2007, p. 7, 13).
Com base nisso, diversos países aprovaram leis que reconhecem a autodeterminação de gênero e viabilizam programas voltados à população trans. É o caso da Lei Trans (2023) espanhola, que proíbe terapias de conversão e permite que pessoas, com mais de 16 anos, alterem o gênero registrado nos documentos de identidade oficiais, sem exigência de avaliação médica ou judicial.
Na Argentina, a Lei de Identidade de Gênero nº 26.743 (2012) garantiu o direito ao reconhecimento da identidade de gênero e ao acesso a tratamentos hormonais, sem necessidade de autorização judicial; enquanto a Lei Diana Sacayán Lohana Berkins (2021) instituiu cotas de emprego no setor público para travestis e transexuais, fortalecendo sua inclusão socioeconômica.
Apesar destes avanços, entretanto, a ascensão de governos de extrema direita, moralmente conservadores, de viés religioso, tem reconfigurado os cenários nacionais e internacionais relacionados aos direitos LGBTQIAPN.
Em abril deste ano, ao solicitar visto ao consulado estadunidense, a deputada federal Erika Hilton teve seu gênero alterado, no documento, para o masculino. Em razão do episódio, que foi descrito por ela como “uma situação de violência, desrespeito e abuso”, a parlamentar desistiu de embarcar para os EUA e, consequentemente, de participar das palestras em Boston, Harvard e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, para o qual havia sido convidada.
Após o ocorrido, Hilton, com o apoio de mais de 150 entidades, denunciou o governo dos Estados Unidos à Organização das Nações Unidas (ONU) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por transfobia (UOL, 2025).
São inúmeros os exemplos de como a agenda anti-trans tem ganhado força nos últimos anos, em especial, nos países que possuem governos de extrema direita.
Ainda nos Estados Unidos, presidente Donald Trump vem desenvolvendo uma agenda de exclusão de pessoas trans da carreira militar nacional. Além disso, Trump eliminou, da agenda política nacional, programas de Diversidade, Igualdade, Inclusão e Acessibilidade.
Na Polônia, foram criadas “zonas livres de LGBT”, onde autoridades locais aprovam resoluções simbólicas rejeitando direitos e visibilidade da comunidade (EURONEWS, 2020). Na Hungria foi aprovada e sancionada uma emenda à lei de reunião que proíbe a realização da Parada do Orgulho e de outros eventos pró-diversidade, restringindo severamente manifestações públicas de apoio à comunidade (CNN Brasil, 2023). Algo similar ocorreu na Turquia, onde o governo proibiu e estabeleceu formas de punições para quem participasse da marcha.
Em El Salvador, o chefe de Estado se posicionou contra a “ideologia de gênero”. Neste país, a ausência de leis antidiscriminatórias eficazes, somada à conveniência do governo, fazem dos assassinatos, ameaças e políticas de punição ao setor algo natural e parte do cotidiano.
É possível observar, portanto, como os temas de gênero e sexualidade e, em particular, os direitos LGBTQIAPN+, encontram-se em constante disputa política e institucional nos planos nacionais e internacional. Mesmo com o avanço dos direitos e a implementação legislação específica para as pessoas LGBTQIAPN+ acessem uma vida digna, elas vivem em uma situação de vulnerabilidade, na corda bamba entre estas conquistas e o seu desmantelamento, em particular no contexto de fortalecimento de agendas conservadoras e de extrema direita ao redor do mundo.
Referências bibliográficas
CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Princípios de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Rio de Janeiro: CLAM, 2007.
DARDE, V. W. da S. A construção de sentidos sobre a homossexualidade na mídia brasileira. Em Questão. Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 223–234, 2009.
GÊNERO E NÚMERO. Lei de Promoção do Acesso ao Emprego Formal para Travestis, Transexuais e Transgêneros “Diana Sacayán – Lohana Berkins” (Argentina, 2021). Gênero e Número, 19 jun. 2023.
Human Rights Watch. “Vivo cada día con miedo” Violencia y discriminación contra las personas LGBT en El Salvador, Guatemala y Honduras y obstáculos al asilo en Estados Unidos. 2020. Disponível em https://www.hrw.org/sites/default/files/media_2020/10/centralamerica_lgbt1020sp_web.pdf Acesso em 17 de mai. de 2025.
LIMA, Bruna Camilo de Souza Silva; OLIVEIRA, João Felipe Zini Cavalcante de. Lei de Identidade de Gênero: uma análise comparativa da lei argentina e o PL 5002/2013 do Brasil. Libertas, Ouro Preto, v. 2, n. 1, p. [1–20], jan./jun. 2016.
PIOVESAN, Flávia; KAMIMURA, Akemi. Proteção internacional à diversidade sexual e combate à violência e discriminação baseadas a orientação sexual e identidade de gênero. In: Anuario De Derecho Público 2017, Facultad de Derecho, Universidad Diego Portales, Santiago de Chile, 2017.
PRADO ROCHA ROSA, Eli Bruno. Cisheteronormatividade como instituição total. Cadernos PET-Filosofia, [S. l.], v. 18, n. 2, 2020. RODRIGUES, J. P. R.; HERNANDEZ, M. DE C. O arco-íris atravessando frestas: a ascensão dos debates sobre direitos LGBT na ONU. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 32, p. 207–248, 2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-335220203206. Acesso em 17 de mai. de 2025.
*Arnaldo de Santana, Igor Targino, Isabella Tardelli Maio e Michele Ferreira de Oliveira
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.