O 1º Fórum do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul reuniu, nesta terça-feira (23), representantes do poder público, lideranças religiosas e instituições de direitos humanos para debater racismo religioso, liberdade de culto e violações de direitos. Na roda de conversa, os presentes denunciaram obstáculos à liberdade religiosa, enfrentamento ao racismo institucional e a importância do diálogo intercultural entre o Judiciário e as comunidades de matriz africana.
“Este diálogo direto do poder Judiciário com os povos de terreiro representa o nosso engajamento com a liberdade religiosa. Reconhecer a matriz afro-brasileira como parte da identidade cultural do Rio Grande do Sul e do Brasil é também reconhecer a dignidade e o direito dessas comunidades a praticarem sua fé com respeito e segurança. Temos que unir forças para combater o racismo religioso, o preconceito e a violência, muitas vezes disfarçados em pequenos atos do cotidiano”, destacou a Ouvidora da Mulher, das Pessoas LGBTQIAPN+ e das Pessoas em Situação de Vulnerabilidade do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), a desembargadora Jane Maria Köhler Vidal
O ouvidor da Defensoria Pública do RS (DPE), Rodrigo Medeiros, ressaltou a importância de ouvir o povo de terreiro. “Não fazemos a luta por vocês, mas queremos nos somar. O povo de terreiro é um segmento significativo da sociedade, com enorme riqueza cultural, e sofre sistematicamente violações de direitos. A crise climática mostrou mais uma vez a invisibilidade dessa população nas políticas públicas. Estamos aqui para escutar, dar eco às denúncias legítimas e encaminhar o que for possível dentro das nossas competências”, afirmou.
O evento foi realizado pela Ouvidoria da Mulher, das Pessoas LGBTQIAPN+ e em Situação de Vulnerabilidade do TJ-RS, Ouvidoria-Geral da DPE-RS e da Ouvidoria-Geral do TJ-RS.

Cidadania e Justiça
A desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira, ex-presidente do TJRS, destacou que a aproximação direta com a sociedade fortalece a justiça. “Uma conversa olho no olho rende mais do que mil ofícios. O Judiciário existe para reconhecer e proteger direitos que foram violados, e a aproximação com a sociedade não diminui a independência dos magistrados. Ao contrário, fortalece o compromisso com a cidadania e a justiça”, disse.
A delegada Tatiana Bastos, do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis, reafirmou o compromisso da Polícia Civil no enfrentamento ao racismo religioso. De acordo com ela, desde 2020 o estado conta com a Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância, que tem uma classificação específica para ocorrências de preconceito por religião. “Nos últimos cinco anos, registramos aumento de quase 300% nas denúncias, sendo as religiões de matriz africana as mais atingidas.” Segundo ela, a Delegacia Online da Diversidade, construída com a participação de lideranças religiosas, oferece visibilidade e acesso ao trabalho de proteção.
Em 2024, a Ouvidoria Nacional do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebeu 2.472 denúncias e constatou 3.853 violações à liberdade religiosa. Segundo levantamento da startup JusRacial, em 2023 haviam 176 mil processos por racismo em tramitação nos tribunais do país, e um terço deles (33%) envolviam intolerância religiosa.
O diretor de Departamento na Ouvidoria-Geral do Estado (OGE/RS), Rogério Grade, destacou a função do órgão de receber denúncias e apoiar a comunidade. “Estamos à disposição para ouvir a população e atuar diante de abusos de poder, como os relatados contra o povo de terreiro. Nosso objetivo é garantir qualidade de vida e direitos que são de merecimento e obrigação dos gestores públicos.”
Ignorância sobre cultura africana reforça racismo religioso
O desembargador Francesco Conti, membro do Conselho de Relações Institucionais e da Comissão de Direitos Humanos do TJRS, afirmou que a falta de conhecimento sobre a história da África e a cultura afro-brasileira é um entrave ao respeito às religiões de matriz africana.
Ele criticou a falta de implementação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que obriga o ensino da história e cultura africana nas escolas, e destacou que muitos profissionais do sistema de justiça e da administração pública ainda tratam práticas afro-brasileiras como infrações por desconhecimento. “O caminho para mudar isso é a educação em direitos humanos, com a efetiva aplicação da lei nas escolas.” Segundo o magistrado, o ensino ainda apresenta a África apenas como origem de pessoas escravizadas, sem abordar sua riqueza cultural e os impactos do colonialismo.

Racismo institucional e descaso com terreiros
O presidente do Conselho do Povo de Terreiro do RS e coordenador nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), o babalorixá Baba Diba de Iyemonjà, relembrou a mobilização contra a criminalização dos abates rituais. “Em 2001, reagimos a uma lei estadual que tentava restringir nossas práticas, e a disputa chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2015 reconheceu por unanimidade o direito ao abate tradicional. Enquanto aqui se abate infinitamente mais em escala industrial, nós fazemos isso de forma litúrgica, respeitosa e como alimento.”
Baba Diba destacou que o RS tem hoje um dos maiores números de terreiros do país, com centenas de casas de axé em Porto Alegre. “São lugares que desafogam o Sistema Único de Saúde (SUS), cuidam da saúde mental, do corpo e do espírito, 24 horas por dia. Mas nossas práticas seguem sendo tratadas como crime”, criticou.
Baba Diba também alertou para o impacto das enchentes de 2024: mais de 50 terreiros foram destruídos na vila Farrapos e um levantamento mapeou 650 casas de axé atingidas em todo o estado. “Um terreiro não é apenas uma casa, é um complexo civilizatório. Até agora só recebemos cestas básicas, que já pararam de ser distribuídas.” O mapeamento foi realizado pelo Núcleo de Estudos de Geografia e Ambiente (Nega) e pelo Curso de Aperfeiçoamento Uniafro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
O babalorixá criticou a ausência de políticas efetivas de reconstrução e a proposta de compra assistida, que, segundo ele, “não repõe o espaço sagrado nem os cômodos da autoridade religiosa”. Ele ainda relatou episódios de racismo e intolerância: já foi puxado pelo colarinho no Palácio Piratini e hostilizado na Assembleia Legislativa. “Passávamos por um corredor de segurança sendo chamados de assassinos. Muitas vezes seguimos sentando no banco dos réus para defender nossas práticas”, contou.
Para ele, os terreiros seguem resistindo apesar do preconceito. “Viemos da terra e voltaremos para a terra. Tudo que a boca humana não come, a terra come. Nós um dia seremos alimento da terra”, concluiu.

Ialorixás relatam insegurança e perseguição
A ialorixá Cláudia Chu, de Alvorada, contou perseguições sofridas em seu terreiro ao longo dos últimos oito anos. “Sou molestada junto com minha comunidade. O terreiro é uma comunidade: nele curamos, educamos e cuidamos. Mesmo assim, somos tratados como alvo.”
Entre os episódios, destacou a presença de cinco viaturas da Brigada Militar após denúncia de vizinhos sobre barulho, ameaças de prisão e interrupção de rituais. Ela também relatou danos a espaços sagrados durante cerimônias com crianças e idosos presentes. “Não se trata apenas de mudar leis ou procedimentos, mas de um olhar atento e escuta verdadeira. Quem recebe uma denúncia deve estar preparado para compreender a gravidade e agir de forma efetiva. Nosso terreiro tem autonomia, mas, quando buscamos proteção, encontramos resistência e descrédito.”
A ialorixá afirmou viver insegura e hoje integra o programa de proteção do Estado. “Tenho um inquérito há oito anos no Ministério Público que simplesmente não existe. Precisamos de escuta efetiva e respeito.”
Atingida pela enchente de 2024, Yá Patrícia do Xangô, também conhecida como Mãe Patrícia, relatou estar impedida de realizar suas práticas há 16 meses. “O Estado está ausente, e a representação que existe não tem a efetividade necessária. Mesmo atuando no movimento feminista e pelos direitos humanos, sigo impedida”, disse. Ela denunciou ataques físicos a símbolos sagrados e afirmou que levará sua denúncia a Brasília.
Comunidade denuncia dificuldades institucionais
Almiro Rodrigo Guerat, conhecido como Cebola de Oxalá e assessor da deputada estadual Luciana Genro (Psol), destacou as dificuldades enfrentadas pelo povo de terreiro. “Casas de religião têm sido tratadas como comércios, com exigência de alvará como se fossem boates. Mas nosso sagrado não é comércio. Nossas festas religiosas têm caráter litúrgico, não são baladas.”
Ele citou perseguição em municípios como Cachoeirinha, onde a Brigada Militar confiscou tambores e desrespeitou objetos consagrados.
O secretário da Renafro, Olumide Betinho, avaliou o fórum como retomada do diálogo institucional do povo de terreiro. Ele também destacou a conexão entre racismo religioso e políticas públicas. “Após tragédias, como as enchentes no Rio Grande do Sul, essa população rapidamente é invisibilizada. Um ano e cinco meses depois, a população de terreiro continua abandonada, sem ser ouvida, e sem perspectiva.”
O babalorixá Gersinho Ribeiro de Matos, Mestre Cica, do Batuque Nação Oyó, reforçou a dimensão histórica da violência. “Quando se fala de terreiro, estamos falando de um povo inteiro, assentado em todo o universo. Somos herdeiros de impérios africanos, não de escravidão. Hoje somos discriminados porque outros segmentos religiosos têm mais facilidade de reconhecimento.”
Ele também denunciou violência simbólica e apagamento cultural. “Não se trata apenas de intolerância religiosa. Chamo isso de genocídio. Se Israel lembra 20 mil judeus mortos, nós temos mais de 100 milhões de africanos mortos e, no Brasil, seguimos matando e excluindo nossos seguidores religiosos.”

Políticas públicas e combate ao racismo religioso
Durante o encontro, a diretora de Igualdade Étnico-Racial da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS, Sanny Figueiredo, pontuou que a ausência de dados sistematizados sobre casos de racismo religioso é um entrave para políticas públicas. “Ainda não temos estatísticas organizadas. Falta uma estrutura de observatório que sistematize essas informações. O que temos hoje são levantamentos realizados pelo próprio Conselho do Povo de Terreiro, que inclusive serviram de referência para ministérios federais.”
Ela ressaltou que a construção de indicadores é fundamental para consolidar políticas de Estado. “Quando assumi, ouvi questionamentos sobre por que deveríamos ter um conselho do povo de terreiro. Minha resposta foi clara: porque esse povo precisa de políticas públicas específicas. As religiosidades judaico-cristãs já possuem esse respaldo. O povo de terreiro, em função do racismo religioso e institucional, ainda não.”
O babalorixá Thiago de Bará Onilu, presidente da Associação Independente de Defensores de Religiões Afro-brasileiras (Asidrab), Tiago de Bará, lembrou que a entidade reúne quase 6 mil terreiros no Brasil, sendo 4 mil no RS. “Os terreiros são muito mais do que espaços religiosos: eles cumprem funções sociais fundamentais em áreas periféricas, com papel alimentar, educacional, cultural, espiritual e de saúde, muitas vezes atuando como extensão do SUS.”
Segundo ele, o racismo institucional é a principal barreira enfrentada pelas comunidades. “Depois de três anos de negociação, conseguimos junto à Corregedoria da Brigada Militar um protocolo humanizado de atendimento ao povo de terreiro. Ele está em fase de implementação, mas é um avanço diante do número assustador de ocorrências que enfrentamos.” O babalorixá destacou, no entanto, que em muitas regiões, especialmente na Serra e no oeste, delegacias se recusam a registrar ocorrências. E, quando os registros são feitos, raramente prosperam até o Ministério Público. “Não há, até hoje, nenhuma condenação por racismo religioso no RS.”
Ele lembrou que os casos envolvem situações graves, como incêndios, agressões e até mortes. “Um exemplo é o caso do pai Alfredo de Xangô, na Travessa Venezianos, que sofre racismo religioso e institucional há anos, sem resposta do poder público.”
A Asidrab defende a criação de um grupo de trabalho junto ao Judiciário. “Defendemos a presença de representantes de matriz africana para subsidiar processos e ajudar na interpretação dos casos. O povo de axé só quer viver em paz e seguir seu trabalho social e espiritual com o devido respeito das instituições.”
Importância do diálogo
O fórum reforçou a necessidade de diálogo constante entre Estado e comunidades de terreiro, buscando soluções concretas para garantir direitos, combater a discriminação e valorizar a cultura afro-brasileira no RS.
Durante a reunião, foram deliberadas proposições para ampliar o letramento sobre cultura afro-brasileira nas instituições públicas, incluindo o sistema de justiça, considerando territorialidade, ancestralidade e sacralidade, a realização de reuniões estratégicas com representantes da Brigada Militar, Polícia Civil e Secretaria de Educação. E também a criação de um calendário de escutas itinerantes, com início no Vale do Taquari, visando ampliar o diálogo com comunidades tradicionais em todas as regiões do estado.
Baba Diba avaliou que o fórum representou um marco na aproximação entre o sistema de justiça e o povo de terreiro. “Pela primeira vez no Brasil conseguimos uma aproximação de fato do Judiciário e dos operadores do direito com nossas causas. Há anos denuncio a falta de preparação e de conhecimento sobre o que representa o espaço de terreiro e sobre como funciona o racismo estrutural, que assume diferentes formas, religioso, ambiental, comercial, e impacta diretamente nossa existência e resistência.”
O encontro foi encerrado com a bênção de Xangô e com a aprovação de uma carta formal reunindo as principais demandas, que será encaminhada às instituições competentes como compromisso coletivo pela defesa dos direitos do povo de terreiro.
Nota da Brigada Militar
A Brigada Militar, em nota enviada, afirmou: “Casos similares como relatado podem envolver tanto a segurança pública, no aspecto criminal, quanto a proteção da liberdade religiosa (garantida pela Constituição Federal, art. 5º, VI e VIII). Assim, a atuação policial precisa equilibrar o dever legal de coibir crimes com o respeito a direitos fundamentais.
No que se refere à apreensão de instrumentos e objetos sagrados, ela só pode ocorrer mediante ordem judicial ou em situações de flagrante de delito, quando o objeto esteja sendo usado diretamente para prática criminosa. Nesse caso, deve-se lavrar auto de apreensão, documentar todos os bens recolhidos e garantir sua integridade. É vedado ao policial militar apropriar-se, destruir ou desrespeitar tais itens.
Temos conhecimento de que a liberdade de culto é direito constitucional e, sempre que possível, deve-se priorizar diálogo e mediação, evitando confronto desnecessário. Independente da ação policial, as ações da Brigada Militar são fundamentadas nos princípios da legalidade, proporcionalidade, respeito à diversidade cultural e religiosa, bem como no registro e na transparência.
Caso tenha identificado qualquer irregularidade na ação policial militar, poderá se dirigir à Corregedoria-Geral da Brigada Militar, apresentando seu depoimento, vídeos, testemunhas ou qualquer outra prova admitida em direito.”