As intervenções com arte urbana têm se consolidado como uma das estratégias mais potentes de regeneração de áreas degradadas. Ao ativarem superfícies, percursos e vazios urbanos com pintura, lambe-lambe, escultura e intervenção site-specific, elas produzem um duplo efeito: reorganizam a experiência cotidiana do lugar, devolvendo pertencimento e segurança subjetiva, e redesenham a imagem pública do território, abrindo espaço para novas economias, circuitos culturais e turismo criativo.
Diferente de obras isoladas, os corredores de arte e as galerias a céu aberto criam continuidade: viram rotas de caminhada, mapas afetivos e agendas de visitação. Regenerar, aqui, não é “embelezar”; é recompor vínculos, ativar usos e recontar a história dos territórios a partir de diferentes olhares.
No Brasil, o caso do Beco do Batman, na Vila Madalena (São Paulo), tornou-se referência internacional. O que começou como um gesto autoral de artistas, converteu-se, ao longo do tempo, numa galeria aberta, com manejo comunitário, circulação diária de visitantes e impacto direto em pequenos negócios de entorno: cafés, brechós, ateliês e tours de arte.
A chave do sucesso não está só nas paredes pintadas, mas na curadoria viva, na rotatividade de murais e na ambiência que convida a permanecer. Em Goiânia, o Beco da Codorna seguiu trilha parecida, ativando uma área central com grafite, música e gastronomia de rua. A reocupação constante, com programação acessível e diálogo com comerciantes, impediu a “museificação” estéril dos murais e consolidou o beco como destino cultural, especialmente nos fins de semana.

Arte urbana reposiciona territórios
Em escala latino-americana, multiplicam-se exemplos de como a arte urbana reposiciona territórios. Em Medellín, as rotas de grafite na Comuna 13 transformaram encostas antes estigmatizadas em itinerários de memória e afirmação comunitária, conectados a políticas de mobilidade (as escadas rolantes) e de inclusão produtiva para guias locais, fotógrafos e artistas. Em Valparaíso, no Chile, os morros convertidos em galerias a céu aberto tornaram-se marca identitária da cidade, com escolas de muralismo e circuitos que unem história, mar e arte. Em Bogotá, corredores como o da Calle 26 fizeram do grafite um manifesto de cidadania, didática de direitos e plataforma para novos festivais. Em Buenos Aires, iniciativas em Barracas e La Boca articularam muralismo, patrimônio e rotas turísticas populares, com atenção à permanência de moradores e trabalhadores do entorno.
Essas experiências revelam alguns mecanismos críticos para que a regeneração seja de fato social:
- processos de curadoria compartilhada com moradores, moradoras e fazedoras culturais;
- pactos de manutenção e limpeza que respeitem a estética do lugar;
- marcos simples de governança (quem pinta, como, quando troca);
- mediação com o comércio local;
- e políticas municipais que garantam infraestrutura leve, iluminação, sinalização, água e banheiros, sem burocratizar o gesto artístico.
Do ponto de vista econômico, o efeito multiplicador é claro: a arte urbana amplia a permanência média de visitantes, diversifica os motivos de estar no centro e incentiva cadeias curtas (alimentos, impressos, artesanato, tours), gerando renda com baixo custo de ativação.
Turismo criativo
Em Brasília, o Instituto No Setor vem demonstrando como essa abordagem se traduz no centro da cidade. Com a Galeria dos Becos, o Instituto reabriu passagens e vielas do Buraco do Rato no Setor Comercial Sul. O gesto é mais que estético: ocupa o território, sinaliza rotas seguras, mapeia artistas e cria oportunidades para guias locais, fotógrafos e empreendedores. Trata-se de uma “infraestrutura cultural de baixo carbono”, que usa tinta, papel, som e presença para tecer pertencimento e reduzir o abandono que alimenta a degradação. Ao potencializar o SCS no mapa do turismo criativo, a Galeria dos Becos também reposiciona o centro como lugar de encontro intergeracional, de formação e de trabalho.
A parceria com o Instituto Vulica, responsável pela realização do Festival Vulica Brasil, reforça esse caminho. Inspirado em circuitos internacionais de arte urbana que combinam muralismo, música e mediação, o festival traz curadorias que misturam artistas locais e convidados, oficinas abertas, visitas guiadas e programação educativa.

O resultado é um calendário que não apenas “atrai público”, mas devolve cidadania cultural a quem habita e trabalha nos becos e galerias. Ao ativar fachadas, empenas e passagens, o Vulica Brasil evidencia que a regeneração não é um evento, é um processo: começa com a primeira demão de tinta, mas se sustenta em cuidados recorrentes, documentação, rotatividade de obras e protocolos de convivência entre moradia, comércio e fruição.
É importante, contudo, reconhecer tensões. A arte urbana pode, se mal conduzida, ser cooptada como embalagem de processos de expulsão. Para evitar a “gentrificação por estética”, projetos maduros adotam contrapesos: participação decisória de moradoras e comerciantes; quotas para artistas do território; contratação local de serviços; rotas e horários que respeitem o uso cotidiano; e métricas que avaliem impacto social, não apenas “instagramabilidade”. A arte que regenera não chega de fora para “melhorar” o território; ela emerge da base, em aliança com o poder público e com quem vive a cidade real.
O que aprendemos com o Beco do Batman, o Beco da Codorna, Medellín, Valparaíso, Bogotá e com a experiência da Galeria dos Becos e o Festival Vulica Brasil é que a arte urbana opera como política pública distribuída. Baixo custo, alto impacto e grande capacidade de mobilização.
Quando há curadoria contínua, governança simples e pactos de cuidado, os becos deixam de ser atalhos de passagem para virar destinos, e os centros antes degradados reaparecem como salas de estar da cidade. Regenerar, no fim, é isso: fazer com que as pessoas queiram e possam voltar, ficar e chamar o lugar de seu.
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*Rafael Reis é coordenador do Instituto No Setor.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato – DF.