A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992, também conhecida como Eco-92 ou Rio-92, marcou a fundação de importantes instrumentos multilaterais, com destaque para a Agenda 21, plano de ação voltado para a prática do desenvolvimento sustentável e assinado por 178 governos, e para a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – UNFCCC (1994).
A primeira reunião anual dos países membros da UNFCCC para debater e definir compromissos e obrigações para o enfrentamento global da crise climática, a Conferência das Partes – COP 1, ocorreu em Berlim, no ano seguinte. Dois anos depois foi adotado o Protocolo de Quioto, primeiro tratado jurídico que estabeleceu metas obrigatórias de redução emissões de gases de efeito estufa pelos países desenvolvidos. O documento, que entrou em vigor apenas no ano de 2005 devido à complexidade do processo de ratificação das partes, foi sucedido pelo Acordo de Paris (2015), que o substituiu e o ampliou, mobilizando tantos países do Norte quanto do Sul Global a adotarem compromissos nacionais de limitação do aquecimento global a 1,5ºC – 2ºC.
Toda esta arquitetura política e jurídica voltada à proteção e sustentabilidade do Planeta Terra e de sua biodiversidade está intrinsecamente relacionada aos Povos Indígenas das Américas, assim como a outros povos tradicionais e originários do mundo. Desde 92, entretanto, as organizações e lideranças indígenas recebem o discurso da “sustentabilidade” com ressalvas enquanto, simultaneamente, denunciam a contradição entre o compromisso formalizado pelos Estados e a manutenção de um modelo de desenvolvimento que, fundamentado na ampliação do mercado consumidor e em práticas industriais e extrativistas predatórias, devasta seus territórios e modos de vida.
É válido retomar que o capítulo 26 da Agenda 21 reconhece o direito das populações indígenas à proteção de seus territórios contra atividades ambientalmente inadequadas e ao “estabelecimento de mecanismos nacionais de solução de disputas envolvendo terras indígenas” (Cordeiro, 1999, p. 138). Algo previsto, anteriormente, pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (1989) e reforçado, posteriormente, pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).
Ao longo das mais de três décadas que separam a Conferência do Rio de Janeiro daquela que, em breve, será realizada na capital paraense, lideranças e organizações indígenas batalharam pela ampliação da participação de seus representantes como sujeitos políticos, com voz ativa, nos processos efetivos de tomadas de decisões que formam parte da política ambiental global, historicamente pouco receptivos à pluralidade étnico-racial, cultural e epistemológica.
Como resultado, é possível observar a relevância destes sujeitos tanto no que diz respeito à tradução e mediação de conceitos e categorias próprias às suas cosmovisões para interlocutores não-indígenas (Mesquita, 2018), quanto na pressão que exercem, nos espaços de debates e negociações, pelo reconhecimento de suas demandas. Eles influenciam decisões e buscam, através de todos os meios disponíveis, assegurar o cumprimento dos direitos indígenas, nacional e internacionalmente reconhecidos.
Sob o lema “Não existe solução para a crise climática sem povos e territórios indígenas”, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB esteve presente nas últimas COPs, pautando temas como a demarcação de terras, e as tecnologias e saberes ancestrais como forma de enfrentamento às mudanças climáticas. Durante a COP 26 (Escócia, 2021), representantes da APIB como Alberto Tereno e Sonia Guajajara, atual ministra dos povos indígenas, enfatizaram a necessidade da demarcação e da garantia dos modos de vida ancestrais, pelo papel fundamental destes no equilíbrio climático do qual depende toda a humanidade.
Durante a COP 27 (Egito, 2022), a APIB jogou luzes sobre a necessidade de ampliação e inclusão de biomas brasileiros como a Mata Atlântica e o Cerrado na Lei Anti Desmatamento do Parlamento Europeu, prevista para entrar em vigor em 2026.
A COP 28 (Dubai,2023), por sua vez, esteve marcada pela presença do maior número de lideranças de povos originários do mundo (cerca de 350), entre os quais 60 brasileiras. Elas enfatizaram a desigualdade na distribuição dos recursos internacionais voltados à questão climática, apontando que esses povos, embora responsáveis pela proteção de cerca de 80% da biodiversidade global, têm acesso a apenas 1% desses recursos.
A territorialização da 30º Conferência na Amazônia Legal, a primeira das COPs a ser sediada na região amazônica, vem gerando grande expectativa em relação à qual será o real alcance da participação indígena.
Será possível realizar, dentro de dois meses, uma COP verdadeiramente intercultural e democrática, que coloque os povos indígenas da Amazônia – e outros tradicionais como quilombolas, ribeirinhos e extrativistas – no centro do debate sobre a regulação do clima? Como é sabido, são eles e outros povos subalternizados do Sul Global aqueles que mais sofrem com os impactos socioambientais arrasadores do aquecimento da terra, como os eventos climáticos extremos (secas, inundações, furacões); a destruição da flora e da fauna local; a impossibilidade de realização das atividades agrícolas, pecuárias e pesqueiras; os deslocamentos forçados; o aumento da fome e da pobreza, entre outros.
A região, que faz fronteira com oito países – Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela –, é onde encontra-se a maior bacia hidrográfica e a maior floresta tropical do mundo. Com 395 Áreas Naturais Protegidas, e 3.610 Territórios Indígenas, onde vivem quatrocentos povos indígenas que falam mais de 300 idiomas, e incontáveis dialetos, a Amazônia é fundamental para a regulação do clima através dos processos de absorção de carbono e evapotranspiração (OTCA, 2023).
A decisão do Brasil de sediar a COP na região que abriga mais da metade dos indígenas do país vai além de um gesto simbólico. Além de facilitar o deslocamento dos povos da floresta, é uma afirmação sobre quem são os seus habitantes originais e principais guardiões, e sobre quem são aqueles mais sofrem com os impactos de sua devastação. Um posicionamento, portanto, a favor da necessidade de os povos indígenas terem maior autoridade na definição dos rumos da agenda climática global.
Fazendo referência à categoria “Motiro”, do tupi-guarani, a carta do presidente da COP 30 André Corrêa do Lago afirma a importância dos saberes e tecnologias ancestrais no “mutirão global contra a mudança do clima” e afirma o compromisso do evento com a pluralidade étnico-racial. Destaca, além disso, a nova estrutura de participação oficial formada pelos Círculos de Lideranças, entre os quais encontra-se o Círculo de Povos.
Liderado pela ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara e contando com representantes da APIB e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira- COIAB (anfitriã indígena da COP30), entre outras organizações, o Círculo pretende ser um canal direto de diálogo entre o governo e a base indígenas, tradicionais e afrodescendentes. Seu objetivo é “ampliar a capacidade de escuta de demandas e contribuições” destes setores, “complementar as instâncias de participação já existentes” e “garantir que os conhecimentos tradicionais sejam respeitados e mais integrados ao debate internacional sobre clima e em soluções climáticas” (Presidência da COP30, 2025, p.1).
Segundo Guajajara, o Ministério dos Povos Indígenas está trabalhando não somente pela “maior delegação em quantidade, mas também em qualidade na participação”. Com este intuito programas governamentais foram criados, como o Kuntari Katu e a Caravana dos Povos Indígenas. O primeiro – uma parceria entre o Ministério dos Povos Indígenas, o Itamaraty e o Instituto Rio Branco – visa, através do diálogo entre os saberes tradicionais e a diplomacia, formar trinta diplomatas indígenas para que atuem nas negociações. O segundo, impulsionado pelo Governo do Estado do Pará por meio da Secretaria de Estado dos Povos Indígenas, vem percorrendo as oito etnorregiões do estado, com o objetivo de promover, dialogar e disseminar informações sobre a COP30.
Nem tudo são flores, evidentemente. Um olhar mais atento para a complexidade do tema e para os desafios impostos pela realidade do sistema-mundo moderno – capitalista, neoliberal e colonial – revela as contradições da COP 30 no coração de uma floresta sistematicamente ameaçada pelo desmatamento, agronegócio, garimpo e narcotráfico.
Paralelamente à participação oficial, que conta com o apoio do governo brasileiro, a Cúpula dos Povos reúne mais de quatrocentas organizações e movimentos sociais, além de redes autônomas e práticas insurgentes que lutam por uma transição ecológica e popular. Eles confrontam a ideia de que a crise climática pode ser tratada como um problema técnico e solucionada através de mecanismos hegemônicos que, em última instância, estão atrelados aos grandes poderes políticos e econômicos.
Além disso, denúncias feitas por lideranças indígenas que tiveram suas participações dificultadas pelos organizadores, reforçam o perigo de uma participação cosmética e burocrática, que mantenha as decisões restritas aos interesses políticos e econômicos que determinam, em grande medida, os acordos sobre o clima.
Por fim, é necessário recordar a truculenta repressão da Polícia Legislativa e Militar do Distrito Federal contra participantes do Acampamento Terra Livre (ATL) em abril deste ano. Realizada anualmente desde 2004, a maior assembleia dos povos indígenas do Brasil é um marco do movimento indigena do país, como espaço de mobilização de diferentes instâncias e colegiados para o tratamento de interesses dos diferentes grupos étnicos.
É válido recordar que experiências interculturais como estas tiveram, como precedente, os experimentos políticos e jurídicos andinos surgidos no contexto de promulgação das Constituições Plurinacionais do Equador (2006) e da Bolívia (2009).
Estes experimentos partiram da crítica ao caráter apolítico das políticas da diversidade do multiculturalismo neoliberal, que nega a essência étnico-racial da exploração econômica e das relações de poder (políticas, culturais e epistemológicas) estabelecidas e mantidas, desde os primórdios da colonização, no interior dos estados latino-americanos (e entre estes, periféricos, e os países centrais).
Além disso, costumam acolher os povos indígenas como beneficiários de direitos específicos e localizados, sem permitir que formem parte, efetivamente, dos processos decisórios da política (Santos e Nunes 2003; Walsh, 2009).
Com o intuito de superar a condição de inferiorização e marginalização destes povos e outros setores subalternizados, diversas ações foram colocadas em marcha no Equador e na Bolívia na primeira década e meia do século XXI. Entre elas se destacam:
- a oficialização do BuenVivir/VivirBien como novo paradigma civilizatório inspirado nas práticas e sabres sociais indígenas, e alternativo àquele da modernidade capitalista, orientado pelo horizonte do progresso (Acosta, 2013; Choquehuanca, 2013);
- a semi-estatização de recursos naturais e a criação de diversas políticas públicas e programas sociais que incrementaram significativamente a vida da população marginalizada;
- o giro biocêntrico do direito ambiental com a normatização dos Direitos da Natureza, Pachamama ou Mãe Terra e o questionamento oficial em relação à mercantilização da natureza como recursos, reservas e commodities;
- a criação de arranjos de compensação financeira internacional para projetos de conservação, que evitassem a exploração de insumos energéticos em regiões biodiversas;
- a inauguração de Universidades Indígenas alicerçadas no diálogo entre saberes ancestrais e científicos; a presença de lideranças indígenas e camponesas no alto escalão do governo e a oficialização da Diplomacia Indígena na Política Externa (Huertas 2015; 2020).
Entretanto, um cenário de forte desconstitucionalização foi observado nos dois países andinos, nos anos seguintes, com o crescente atropelamento dos direitos à consulta e à autodeterminação, o esvaziamento do sentido crítico e indígena do Buen Vivir, a utilização do aparato coercitivo do estado contra os movimentos sociais e o distanciamento entre os governos e organizações críticas.
Outros dois fenômenos se destacaram neste processo de desmantelamento do projeto da Plurinacionalidade: a intensificação das atividades extrativistas nos territórios indígenas e de proteção ambiental, e a ausência crescente dos indígenas nas instâncias decisórias da política nacional.
A realização da COP30 na amazônia paraense reafirma o protagonismo do Brasil na agenda climática global e fortalece os processos, seculares, de luta e de resistência dos povos indígenas. Sem sombra de dúvida, estamos diante de uma grande oportunidade.
Mas, para que esta oportunidade se materialize, os organizadores deverão se empenhar em apresentar soluções concretas para a transição energética ecológica, com a implementação de estratégias de: economia circular, proteção dos biomas, bioeconomia, planejamento urbano, indústrialização de baixo impacto e, nos termos de Gudynas (2011), de conversão para um “extrativismo indispensável”.
Levando em consideração, na formulação destas soluções, as demandas e direitos dos povos indígenas e a crítica que fazem, cada vez refinada, às ideias de sustentabilidade, desenvolvimento sustentável e às propostas do capitalismo verde. Algo que só poderá ocorrer a partir da participação efetiva e capacitada deste setor nos processos decisórios da política ambiental global, ainda muito limitada e em processo de consolidação e disputa.
Quiçá as Nações Unidas, as organizações da sociedade civil e os governos e comprometidos com o combate à crise climática, em especial o brasileiro, possam se inspirar nos erros e acertos das experiências andinas evitando que, na prática, a COP 30 desafine com os discursos e iniciativas interculturais divulgadas até agora, bastante promissoras.
Referências
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*Por Bruna Muriel, Isabelle Bocatto, Fabíola Lara de Oliveira, Igor Targino Silveira, Lucas Faustino de Oliveira
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.