Existe uma cantilena recorrente em debates contemporâneos no campo das tecnologias: ela seria a chave para resolver todas as crises que atravessamos, especialmente a inteligência artificial. Uma bala de prata magnífica que mudaria inclusive a nossa forma de ser no mundo.
Da mudança climática à desigualdade, da crise democrática à escassez de recursos, sempre aparece um “novo” dispositivo, uma aplicação ou um algoritmo prometido como solução. Essa narrativa, porém, é menos inocente do que parece. Ela é expressão de um fetichismo tecnológico que desloca responsabilidades políticas, éticas e sociais para um suposto destino imanente da técnica.
Evgeny Morozov, pesquisador bielorusso, chamou esse fenômeno de tecnosolucionismo: a ideia de que problemas complexos (estruturais, históricos, atravessados por conflitos de poder) podem ser resolvidos por soluções técnicas, rápidas, “neutras”. Mais do que isso: há a defesa de um raciocínio circular em que a própria tecnologia é convocada para resolver problemas que ela mesma produziu, numa relação de causas e efeitos que faz muito sentido para o campo e pouco para qualquer outra área do pensar.
Martin Heidegger já advertia que a técnica moderna não é apenas um conjunto de ferramentas. Ela é um modo de alocação de recursos, organizando e reduzindo o mundo ao que pode ser calculado e explorado. Nesse sentido, a confiança cega na tecnologia não é apenas ingenuidade, mas sintoma de um esquecimento mais profundo: acreditamos que a técnica nos libertará sem perceber que é justamente ela que molda as condições do nosso cativeiro.
Quando o discurso regulatório repete que “não podemos impedir o desenvolvimento tecnológico”, assume-se como inquestionável que há uma linha reta de progresso que precisa ser seguida. Mas o que se chama de “desenvolvimento”, em nosso tempo, quase sempre corresponde a reproduzir o mesmo paradigma: soluções vindas de um modelo cultural e econômico gestado no Vale do Silício, que exige da sociedade adaptação constante. É a lógica de acomodar a vida ao software, e não o contrário.
É acomodar as dores, sacrificar os direitos, numa promessa de que tudo vai se resolver a contento.
Esse paradigma exige um pragmatismo tal que é corrosivo das pragmáticas diversas do viver neste planeta em exaurimento. Se alguém questiona os custos sociais, ambientais ou humanos, logo surge a resposta: “é inevitável”. Assim, pessoas em posição de vulnerabilidade são convocadas a acomodar suas dores para que o projeto desenvolvimentista siga adiante.
É nesse movimento que direitos antes considerados fundamentais passam a ser relativizados. O exemplo mais evidente está nos direitos de propriedade intelectual, que, de tão caros ao discurso liberal, são flexibilizados quando atrapalham o apetite das grandes empresas de dados e inteligência artificial.
Mas os ataques vão além: colocam em risco alternativas de futuro, ao sufocar qualquer modelo que não se enquadre na lógica de escala, velocidade e financeirização da inovação – vide, no tema, como a denúncia do custo socioambiental da tecnologia é relegada a um caso de “a IA vai resolver o nosso problema de recursos”.
A ética, quando aparece, é tratada como obstáculo ou ornamento. Argumentos sobre justiça social, sustentabilidade ou dignidade humana são recebidos com uma resposta pragmática: “precisamos ser realistas”. “Realismo” aqui significa abrir mão do impossível, do imaginário, do futuro não previsto pelo mapa e planos de grandes empresas de tecnologia. É a acomodação forçada da sociedade a um determinismo técnico que se apresenta como natural.
O problema, portanto, não é a tecnologia em si, mas a forma fetichizada como ela é apresentada, planejada, aplicada. Como se fosse uma força autônoma, inevitável, com dinâmica própria. Se tudo é determinado pela tecnologia, pouco resta para a deliberação coletiva, para a construção de alternativas.
Mas tecnologia não é natureza, é obra humana. É fruto de decisões sobre onde investir, o que priorizar, a quem servir. A insistência em apresentar cada novidade como inevitável é uma estratégia ideológica: oculta interesses, mascara conflitos e transforma em destino aquilo que é escolha. Mais do que isso, coloca-nos numa posição de combustão de nossas capacidades biológicas e naturais, forçando-nos a uma situação de submissão e coisificação de uma matrix.
Dizer que “a tecnologia não nos salvará” não significa cair em um ludismo anacrônico ou em uma recusa total da técnica. Significa reverter a lógica que nos obriga a adaptar vidas e direitos às promessas do progresso. Significa recuperar a capacidade de colocar limites, de afirmar que algumas dores não podem ser normalizadas em nome da inovação e que essa inovação só realmente é “nova” quando olha para os diferentes mundos que habitam dentro desse planeta esgotado.
O que está em jogo não é apenas regular excessos, mas abrir espaço para imaginar futuros que não estejam aprisionados à gramática do Vale do Silício. Esse desafio tem posto o Brasil numa contradição sem fim: ao tempo que busca uma Conferências da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP-30), de implementação de soluções e compromissos ambientais, cede ao criar um Plano Nacional de DataCenters (Redata) que não traz, de pronto, medidas sobre a proteção ambiental e dos territórios.
Ao tempo que se flagela com o discurso de ódio na forma de machismo, racismo e misoginia, o Governo Federal cede e deixa de apresentar uma alternativa ao “PL das fake news”, que buscava trazer uma regulação à internet, ficando apenas com um PL concorrencial cheio de economicismos e tecnocracia.
Devemos pensar em futuros em que a técnica possa ser instrumento, e não destino. Futuros em que a política recupere sua centralidade, lembrando que os dilemas humanos não podem ser delegados a um algoritmo, nem resolvidos por um deus ex machina apresentado na forma de aplicativo.