Organizações políticas e da sociedade civil haitianas rejeitam a perspectiva de nova intervenção militar estrangeira no país, como defendem os Estados Unidos e o presidente interino do Haiti. Laurent Saint-Cyr, que preside atualmente o Conselho Presidencial de Transição em discurso nesta quinta-feira (25) na Assembleia Geral das Nações Unidas, voltou a pedir “ajuda internacional” para atuar como força de segurança no país.
“A situação atual foi criada, historicamente, pelos mesmos que agora pretendem trazer soluções!”, explica Jean William Jeanty, coordenador da organização política Kontrapèpla. Ecoando a posição de vários movimentos populares do país, ele enumera as múltiplas invasões, ocupações e ingerências que o Haiti enfrentou desde que se tornou independente e contextualiza a atitude estadunidense em um projeto de dominação imperialista.
“Não é um problema de violência, nem de segurança que eles vêm resolver. É questão geopolítica, de controle absoluto sobre o continente americano. Há uma disputa de hegemonia. É isso que explica as ameaças à Venezuela, ao Canadá, ao Panamá… Mas o Haiti sendo um país mais enfraquecido, é por aqui que eles vão começar”, diz Jeanty.
O atual presidente do Conselho Presidencial de Transição e integrante da oligarquia haitiana que é ligada aos EUA, Laurent Saint-Cyr, se declarou no começo da semana a favor do plano do governo estadunidense de Donald Trump, que deve ser votado até o fim de setembro pela ONU.
“O Haiti não pode enfrentar sozinho esta crise alimentada por redes criminosas transnacionais. Hoje, precisamos de mais homens, meios logísticos, equipamentos adequados, financiamento suficiente e reforço operacional para acabar definitivamente com o poder de fogo desses grupos armados”.
Falando para líderes mundiais nesta quinta-feira (25), na Assembleia Geral da ONU, Saint-Cyr voltou a pedir ajuda, inclusive para pagar os custos dessa nova ocupação militar.
“O Haiti precisa da vossa ajuda, precisa urgentemente de ajuda humanitária, ajuda financeira, ajuda técnica e ajuda política. E precisa, acima de tudo, de paz. Precisa de uma paz duradoura, uma paz justa, uma paz que permita ao povo haitiano reconstruir o seu país, desenvolver a sua economia, fortalecer as suas instituições e consolidar a sua democracia”, disse ele se referindo à violência de grupos armados que atuam no país.
“Essa guerra pode ser evitada, mas para isso, precisamos de uma ação forte e imediata da comunidade internacional. Apelo a todos os Estados-membros das Nações Unidas para que se mobilizem para ajudar o Haiti. Apelo a todas as organizações internacionais para que intensifiquem a sua ação no Haiti.”
Ocupações nunca funcionaram
O Haiti tem um longo histórico de forças militares internacionais que trouxeram mais problemas do que soluções para sua população. A atual Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MMAS) foi criada em 2023 num contexto de crise humanitária e de violência no Haiti. Depois do assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, as gangues armadas aumentaram rapidamente seu controle do território, com assassinatos, expulsões, sequestros e abusos, além de dificultar o aprovisionamento em alimentos dos territórios que controlavam.
A incapacidade do governo da época para enfrentar a situação justificou à época a missão militar internacional para reestabelecer a segurança e os serviços básicos para a população. No entanto, os traumas que havia deixado a Minustah – missão da ONU liderada pelo Brasil, que foi acusada de múltiplas violações de direitos humanos entre 2004 e 2017 – encaminharam as discussões para o envio de uma operação híbrida, na qual um contingente de soldados coordenados pelo Quênia, e não diretamente pela ONU, atuaria ao lado da Polícia Nacional Haitiana.
No fim, além de impopular no Haiti, a MMAS aparentou ser mais uma cortina de fumaça do que ter intenção real de solucionar a crise haitiana. Aprovada em outubro de 2023 pelo Conselho de Segurança com mandato de dois anos, foi apenas depois de 9 meses que ela começou de fato, com a chegada dos primeiros 400 quenianos na ilha, em junho de 2024. E mesmo contando com a contribuição de alguns países caribenhos, o número de soldados e policiais que a compõem nunca passou de mil, mantendo-se longe dos 2 500 inicialmente previstos.
Segundo o presidente queniano, William Ruto, a força operou com apenas 40% de suas capacidades, devido a uma falta de financiamento, equipamento e logística. “A maioria dos veículos que temos são de segunda mão e, por isso, eles quebram com frequência, o que põe o pessoal em alto perigo quando isso acontece em zonas de conflito”, deplorou na ocasião da 80a Assembleia Geral da ONU, trazendo apenas um exemplo da inoperabilidade da missão no território.
Se a MMAS não foi acusada de cometer os mesmos crimes do que a Minustah, ela também não trouxe nenhuma resposta contundente em termos de combate às gangues. William Ruto pode até se vangloriar da retomada do aeroporto de Porto Príncipe que, segundo ele, “hoje funciona perfeitamente”. A realidade é que ainda não ha voo internacional de passageiros pousando na capital e atravessar o país de norte a sul, seja por via aérea ou terrestre, continua praticamente inviável para a população.
Em relatório publicado em junho deste ano, analistas da ONU se diziam “preocupados não apenas porque a violência das gangues tem se propagado no país, mas também pela crescente brutalidade que a caracteriza”. No entanto, longe de questionar os fundamentos de uma operação que custou centenas de milhares de dólares sem ter dado resultado, a ONU deve decidir em breve se aposta novamente em um modelo violento que nunca funcionou no Haiti.
A crise que vive o país hoje é estrutural e não envolve apenas a segurança, mas também o acesso à saúde, à luz, à água e à comida. Neste contexto, um conflito armado agravaria de forma exponencial o sofrimento da população, sem oferecer muita perspectiva em termos de transformação da realidade, dizem as entidades civis.
Para Jeanty, é o Estado haitiano que precisa ser reconstruído, e isso não pode ser o papel de um exército estrangeiro. “O problema das gangues existe em todos os países, especialmente nas Américas. Mas a diferença que tem no Haiti é que o estado inteiro está controlado por máfias, por oligarquias, por poderes internacionais que não trabalham para a população.”
“A primeira coisa é recuperar o Estado, que precisa ter capacidade de controlar as suas fronteiras, neutralizar quem manda nas gangues e quem está envolvido no tráfico de armas. O poder judiciário tem que voltar a funcionar. Não é uma intervenção estrangeira que vai permitir isso, precisamos de um estado autônomo.”
Os movimentos afirmam que o Haiti não produz armas, munições, nem consome as drogas que transitam pelo território e financiam o crime organizado. Neste sentido, retomando as palavras do próprio Saint-Cyr, as “redes criminosas transnacionais” precisam, sim, ser desmanteladas a nível global. E se tem uma contribuição que a comunidade internacional – e em especial os Estados Unidos – pode fazer para combater as bandas armadas e proteger o povo haitiano, é combater todo tipo de tráfico nos seus próprios países, em vez de promover, no Haiti, uma escalada de violência que promete acabar num banho de sangue.