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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Felizes para sempre?

Resta-nos sermos felizes ainda que momentaneamente

Por Elvis Rezende Messias

Por que filmes, séries, novelas e livros de romance em geral concentram as coisas boas da vida de suas personagens apenas para os últimos ou o último capítulo?

E por que, em geral, essas coisas boas são retratadas, na verdade, somente como inícios de ciclos (uma cerimônia de casamento acontecendo, mas não a vida de casado concretamente; a conquista de um novo emprego, mas não o dia a dia do emprego que, pouco a pouco, vai deixando de ser novo; a aprovação num novo curso; o início de uma vida com riqueza econômica; um projeto com promessas de sucesso…)?

E mesmo que sejam coisas já minimamente estabilizadas, só se faz um aceno genérico de que ficou relativamente boa a vida das personagens envolvidas. Sem contar que é geralmente muito vago o que se veicula como “vida boa”.

Em síntese, por que, em geral, essas dramaturgias e literaturas concluem-se com um certo “felizes para sempre”, mas não se aprofundam nisso, não reservam tempo para isso? Por que é tão difícil aprofundar-se no “felizes para sempre”?

Ora, o ser humano não tem condições de relatar o que não é concretamente vivido, experimentado, registrado por ele. O ser humano tem condição de imaginá-lo, mas também o fará somente em partes, sob os limites do que concretamente já viveu até então.

Fato é que o “felizes para sempre” é mais um sonho, um desejo, uma projeção, não uma realidade. O “felizes para sempre” não existe.

Felizes?! Como e o que é isso?

Não há humano que tenha vivido isso e, portanto, não há quem possa relatar, descrever, representar o que seja isso em linguagem concreta e clara. Daí ser mais fácil só acenar, intuir, deixar um aperitivo, atiçar a imaginação, a curiosidade ou mesmo o desejo. Dedicar muitas cenas ou páginas ao “felizes para sempre” não passaria de especulação, e rapidamente pareceria algo abstrato demais, idealista ou até irreal, cansando os interlocutores.

Temos aí um dado antropológico, um pequeno lume de parte do complexo fenômeno humano. Talvez possamos chamá-lo, psicanaliticamente, de sintoma, uma realidade mais imediata que oferece indícios de uma realidade submersa e menos evidente.

Almejamos a felicidade, embora não saibamos acabadamente do que ela se trata. Felizes?! Como e o que é isso? Felizes “para sempre”?! Como assim, o que é isso? É possível? Esse “para sempre” começa quando? Ele significa “desde sempre” ou “daqui em diante sempre”?

Felizes “desde sempre” não temos evidência do que seja, já que não conhecemos um ser humano sequer que nunca tenha sofrido situações de infelicidade, ainda que momentâneas. Também não temos evidências do que vem a ser o “felizes daqui em diante sempre”. Há quem tenha se tornado feliz ininterruptamente a partir de um determinado momento de sua vida até o seu fim?

Para quem ainda esteja vivo, parece que não convêm as expressões “para sempre” nem “daqui em diante sempre”; o minuto seguinte pode contradizer o recorte temporal feliz imediatamente anterior que alguém viveu. A vida não aceita o “para sempre” enquanto ainda viceja.

O sintoma de não dedicar muito tempo ao “felizes para sempre” é, de algum modo, mesmo que inconsciente, um sinal de honestidade existencial. O ser humano, enquanto vive, não é capaz de saber plenamente o que é ser feliz para sempre por conta do complexo fato de não ter vivido isso até hoje.

Talvez haja felicidade nisso: em inventá-la diariamente diante das intempéries da vida vivida; mas não dá para dizer com certeza que a felicidade para sempre seja exatamente isso.

Um instante bom que vale por ele mesmo, vivido com intensidade no exercício de nossas aptidões mais intimamente humanas, talvez seja um instante muito feliz; talvez se possa até mesmo dizer que a felicidade seja algo dessa espécie… Porém, “um instante” não é “um para sempre”, já que um instante se acaba no instante seguinte.

O mito de Sísifo fala da atividade de uma invenção constante de sentido à vida no meio de uma vida diariamente consumida por dores. Albert Camus sugere que precisamos imaginar Sísifo feliz em sina existencial, como se a felicidade nascesse do absurdo e só faria sentido em contraste com o absurdo e no absurdo. Então, seria possível, “para sempre”, somente uma felicidade absurda ou mesmo uma absurdidade feliz? Mas não é isso que as pessoas imaginam e desejam como “felizes para sempre”.

O impasse continua, a aporia permanece, a reticência persiste… A felicidade “para sempre” ou “daqui em diante sempre” segue insuficientemente existente, e, como tal, continua impossível descrevê-la demoradamente em cenas e páginas. Embora o ser humano queira que o “para sempre” seja algo real não só nas últimas cenas do seu ato vital, trágica e sintomaticamente, ele segue acenando para isso tão somente nos últimos capítulos de suas invenções literárias, pois faltam-lhe condições para, antes, vivê-la.

Por ora, o “felizes para sempre” segue sendo um amor sonhado, não um amor vivido.

Resta-nos, então, a tentativa de sermos felizes assim, ainda que momentaneamente, inventando e reinventando os nossos “para sempre” cotidianos, que não duram entre nós, mas que também não se acabam, dentro de nós, no convívio com os seus opostos insistentes. Só se é, sendo.

Elvis Rezende Messias é filósofo, teólogo e doutor em Educação. Docente do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), Campus Patos de Minas. Contato: [email protected]

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal