Brasília é conhecidamente uma cidade cosmopolita, multicultural, uma espécie de vitrine nacional onde diversas culturas convergem. De norte a sul do país, de todos os cantos do mundo, a cidade explode em cores e diversidade, sendo um caldeirão borbulhante, apesar de nova, de histórias e sonhos. Contudo, apesar de abraçar a todos, existem lados que estão em menor evidência, sendo muitas vezes esquecidos.
Sabia que em meio à capital federal, existe um território indígena demarcado, onde diversas etnias habitam e interagem, mantendo suas culturas, saberes e modos de vida, lutando contra a pressão social em seus territórios? Sim, localizado no Setor Noroeste, as comunidades indígenas resistem!
Palco das maiores mobilizações indígenas do mundo, Brasília recebe anualmente diversos eventos de grande porte, como o Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas, trazendo as vozes dos povos originários para a luz do debate público, reivindicando direitos e cobrando o cumprimento das leis garantidas pela Constituição Federal, a proteção do meio ambiente e seus territórios. Pressionando também para a demarcação de terras e outros assuntos de grande interesse da sociedade como um todo, como a mitigação dos efeitos adversos das mudanças climáticas, garimpo ilegal e o desmatamento.
Além das movimentações de cunho político, Brasília também é um dos grandes centros de disseminação de saberes tradicionais, como cerimônias e rituais de cura conduzidos por esses povos que habitam na cidade.
Nesse contexto, as casas de rezo e os centros de cura acabam se tornando lugares onde ocorre a conscientização sobre a pluralidade cultural de nosso país, servindo como meios de promoção ao debate, intercâmbio cultural e combate ao racismo que os povos originários ainda sofrem.
Diversas pessoas buscam estes lugares para conhecer um pouco das culturas indígenas, suas cerimônias sagradas, o contato com as plantas de poder e terem experiências de expansão da consciência, quer seja através de rezos ou através do uso de substâncias enteógenas, como a ayahuasca, uma bebida sagrada utilizada por diversos povos amazônicos há milhares de anos. A Cabana do eterno Eh, Basahkewii, Instituto Caboclo Curador, Instituto Kapa Shanenawá são exemplos de centros de encontro e promoção da valorização das culturas originárias.
Allan Kardec, fundador e guardião da Cabana do Eterno Eh, conta: “Desde crianças somos educados no catolicismo, no evangelismo, espiritismo, Haré Krishna, umbanda, mas a cultura espiritual dos Povos da Floresta não chegou até nossa civilização branca. Entendemos que a Cabana do Eterno Eh seria esse templo, esse Centro de Estudos da Espiritualidade Indígena”.
Fundado em meados de 2010, o espaço já recebeu diversos povos e lideranças indígenas, como Álvaro Tukano, Ailton Krenak, Raoni, além de representantes da ONU, acadêmicos diversos e autoridades, sendo reconhecida como o primeiro espaço em Brasília a realizar cerimônias exclusivamente de povos originários do Brasil e das Américas.
Basahkewii, a casa de rezo do povo Yepá Mahsã, localizada no setor Noroeste, é a primeira instituição religiosa indígena de Brasília, sendo mantida pela família de Álvaro Tukano. O espaço tem como proposta receber lideranças de diversos povos e servir como centro de cultura dos saberes originários. Luvãn, filho de Álvaro Tukano e um dos responsáveis pela casa de rezo, destaca: “a importância do espaço é manter a cultura, a língua, mesmo longe dos territórios tradicionais, para lembrar que a identidade indígena está em todos os lugares, para caminharmos com nossos conhecimentos ancestrais e culturais dos povos indígenas”. Surgiu com a necessidade da família em manter um espaço onde houvesse respeito aos saberes e cultura de seu povo, para fortalecer o território do Noroeste e receber outros povos do Brasil e do mundo. “Brasília não é uma cidade acolhedora aos povos originários, sendo muito difícil a realidade do indígena aqui”, diz Luvãn. O local já foi palco de diversas cerimônias, vivências, rodas de conversa, palestras e exposições sobre a luta por direitos dos povos originários.
O Instituto Caboclo Curador, um espaço neoxamânico de base ayahuasqueira, fundado e dirigido por Gustavo Barcelar, também é um lugar que busca honrar e respeitar as tradições originárias, recebendo lideranças espirituais de diversos povos, fazendo a conexão entre a cidade e os territórios tradicionais, buscando promover maior integração entre as diversas culturas e a cidade. Além destes, existem diversos outros espaços que se utilizam das medicinas indígenas e promovem esse tipo de evento, buscando integrar cada vez mais os saberes dos povos originários em contexto urbano.
Entretanto, se destaca a necessidade de manter um diálogo aberto com as lideranças, para evitar a apropriação indevida e o apagamento cultural com a banalização de cerimônias e o uso de medicinas por pessoas em espaços não preparados. Nesse sentido, Luvãn destaca a importância de se manter a integridade dos saberes tradicionais.
“Existe muita comercialização em cima dos saberes tradicionais, além da apropriação de culturas por pessoas não indígenas para o comércio de cursos de xamanismo, que não são bem vistos pelo povo”. Kelvin, estudante de psicologia e terapeuta corporal, relata que é comum a apropriação cultural sem o devido respeito de pessoas brancas e não indígenas, destacando a importância de conhecer os espaços que realmente são conduzidos por povos originários para a manutenção dos saberes ancestrais. Corsa Branca, uma praticante de neoxamanismo, destaca a importância de honrar os verdadeiros donos dessa terra, os povos originários, conhecendo e respeitando os povos indígenas, apoiando em suas lutas e estando em contato com lideranças para aprender.
Desta forma, com base no respeito aos diferentes povos, conhecendo suas culturas e modos de vida, é possível combater o racismo e o apagamento da identidade, resgatando saberes tradicionais e ouvindo as vozes das lideranças que rezam, que cantam, que mantêm vivas as chamas da tradição que resiste, mesmo em um grande centro urbano como Brasília. Porquê, como todo canto deste país, aqui também é território indígena vivo. Com os olhos abertos e os ouvidos sensíveis, poderemos aprender um pouco mais sobre nossa identidade brasileira.
*Wellington L. Grocheveski é engenheiro agrônomo, mestre em Produção Sustentável pela Universidade de Brasília. É ativista pelos direitos humanos e meio ambiente. Desde 2017 organiza vivências com povos indígenas na cidade de Brasília e Entorno, como também, ações agroflorestais e de educação ambiental em territórios tradicionais no Brasil.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato – DF.