Autor de mais de 50 livros e 300 canções, o sambista e escritor Nei Lopes afirma que a raiz do carnaval do Rio de Janeiro começou a se desfazer quando as agremiações trocaram os tradicionais terreiros pelas quadras. “A escola de samba perdeu quando resolveram fazer grandes edifícios para sediarem as escolas”, diz ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato.
“Isso começa com a Mangueira, na década de 60 para 70, quando criou o Palácio do Samba. O terreiro deixa de ser terreiro e vira quadra. Quadra vem das escolas comerciais, do militarismo; o terreiro, não. O uso da palavra terreiro vem da religião. Então são palavras que estão perdendo a sua finalidade”, complementa.
Para Lopes, esse deslocamento abriu espaço para uma lógica de mercado que passou a dominar o carnaval. “É a escola de samba se monetizando, tudo é dinheiro. A escola de samba se concentrou no carnaval, virou um apêndice do carnaval, quando deveria ser diferente: o carnaval é que deveria ser o apêndice da escola de samba”, critica.
O compositor lembrou que as escolas, até meados do século 20, funcionavam como espaços de convivência e criação coletiva. “Era realmente uma coisa de clube, onde se dançava o samba de salão, frequentado por negros, que assimilava tango e outras danças. Foi isso que me atraiu, não o carnaval”, conta.
Apesar do cenário, o sambista reconhece esforços recentes para recuperar a ancestralidade do samba nas passarelas. “Já comecei a ver escola levando o candomblé para o desfile. É a nossa cultura que está sendo mostrada. Mas aí começa também a concorrência, o espetáculo em cima da verdade. É sobre isso que temos que estar alertas”, afirma.
Novo dicionário e debate político
Nei Lopes também falou sobre seu lançamento mais recente, o Dicionário de Direitos Humanos e Afins. Segundo ele, a obra nasceu da inquietação com o cenário político após as eleições de 2022 e da necessidade de explicar conceitos que, em sua visão, estavam sendo esvaziados. “A brabeza toda que toma conta do mundo inteiro agora e do nosso país também é essa incompreensão sobre o que está acontecendo porque os conceitos não são explicados. A ideia foi essa, esclarecer as pessoas”, explica.
Diferente de um dicionário tradicional, o livro desenvolve verbetes em profundidade, como forma de resistência à comunicação fragmentada da internet. Para o sambista, a globalização da linguagem tem esvaziado o sentido das palavras. “Tem que esclarecer o que é, não dizer ‘podcast’. Isso tem um nome [em português]. A linguagem global não é boa, isso não é bom”, pontua.
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.