O direito à interrupção voluntária da gravidez continua gerando alguns dos debates sociais e políticos mais polarizantes. Na América Latina e no Caribe, apenas cinco países permitem que as mulheres interrompam legalmente a gravidez se assim desejarem. Cuba foi o primeiro país da região a garantir esse direito, há 60 anos, e sua legalização precoce foi um dos marcos da Revolução Cubana.
Em Cuba, o aborto é considerado um direito conquistado pelas mulheres após a Revolução e é realizado gratuitamente em hospitais públicos. Essa garantia significa que qualquer mulher — maior de idade, ou menor com o consentimento dos pais — pode se dirigir a um hospital público, procurar o serviço correspondente e solicitar a interrupção da gravidez sem outro requisito além de sua própria decisão, como explicou ao Brasil de Fato a advogada e ativista feminista Loren Alonso.
“A autodeterminação das mulheres é um princípio essencial”, enfatiza Alonso, e ressalta que “a sociedade assimilou isso como um direito”. Ela esclarece que “não é que esteja completamente aceito por todos; há pessoas que, por motivos religiosos, por exemplo, não concordam. Mas é um direito que as mulheres conquistamos: o direito de escolher sobre nós mesmas, e essa decisão não é tão questionada quanto em outros países, onde surgem muitos problemas”.
A revolução dentro da Revolução
Sua legalização precoce foi um dos marcos da Revolução Cubana, parte de um processo social mais amplo que incluiu a promoção dos direitos das mulheres, o acesso universal à saúde e à educação, bem como o direito ao planejamento familiar. Mas nem sempre a situação foi essa, e isso se refletia nos números da mortalidade materna antes da Revolução, atualmente uma das menores da região. A falta de acesso à educação sexual, a inexistência de métodos contraceptivos e a ausência de procedimentos seguros condenavam as mulheres das classes populares, especialmente nas zonas rurais, a enfrentar um alto risco de morte prematura.
Foi com o triunfo da Revolução que esse flagelo foi revertido. Por meio de um amplo trabalho de organizações revolucionárias — formadas especialmente por mulheres — que levaram atenção médica e educação às comunidades mais empobrecidas, foram lançadas as bases para a regulamentação formal do aborto. Inicialmente, tratava-se fundamentalmente de uma questão de saúde pública, guiada por um princípio da Revolução: colocar a vida no centro do projeto social.
Assim, em 1961 o aborto foi descriminalizado e, em 1965, criou-se o marco legal para que ele fosse praticado dentro do Sistema Nacional de Saúde. No entanto, embora exista um marco que regule sua implementação — e que inclusive penaliza severamente quem se recusa a realizar um aborto quando solicitado por uma mulher ou tenta cobrar por ele —, o aborto em Cuba não conta com uma lei específica.
A regulamentação estabelece que qualquer mulher pode realizar um aborto, desde que o procedimento seja feito em hospitais ou dentro do sistema de saúde — inteiramente público em Cuba — e sob supervisão profissional. É permitido até a 12ª semana de gestação, sem necessidade de justificar o motivo. Após esse prazo, a interrupção só é autorizada se a vida ou a saúde da mulher estiver em risco, ou se forem detectadas malformações incompatíveis com a vida do feto.
A liberdade de escolher
“Como mulher, me dá paz viver em um país onde tenho plena liberdade para escolher sobre meu corpo, onde o Estado me acompanha e me fornece os meios para fazê-lo sem problemas”, destaca Alonso, que acrescenta que este é um direito do qual muitas mulheres na América Latina e no Caribe ainda carecem.
“É um direito que, em pleno 2025, está garantido em muito poucos países, o que é lamentável. Por isso acredito que, embora Cuba ainda tenha algumas lacunas, essa é uma das maiores vitórias conquistadas pela Revolução e que se mantém até hoje”.
Apesar dos enormes avanços alcançados, Loren ressalta que ainda existem “dívidas com as mulheres”. A luta contra o machismo – ainda muito presente na sociedade -, assim como o aprofundamento e a atualização das perspectivas feministas nas estruturas políticas e estatais, fazem parte de um “processo revolucionário que precisa continuar evoluindo”, afirma. Um processo em que as conquistas do passado devem ser defendidas no presente, mas também servir como impulso para novas conquistas.
Uma ameaça à liberdade efetiva
Os direitos não são apenas uma questão jurídica, mas também de aplicação efetiva. Apesar das regulamentações existentes, como ocorre com qualquer direito, sua concretização depende de condições sociais que tornem possível o exercício real, observa a jovem advogada e ativista.
Nos últimos anos, Cuba está enfrentando uma grave crise econômica e social — em grande parte provocada pelo persistente bloqueio dos EUA — que gerou um desgaste no sistema de saúde. Apesar dos avanços históricos e da abrangência da rede pública, a ilha enfrenta dificuldades para adquirir medicamentos essenciais, incluindo anticoncepcionais.
Essa situação ameaça a efetividade do acesso ao direito ao aborto. “Nas condições atuais do país, de fato, têm existido problemas para exercer esse direito de maneira efetiva”, diz, ressaltando que “é preciso continuar protegendo as garantias para os direitos das mulheres”.
OMS
Após décadas de luta por parte de organizações de mulheres, no início de 2022 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o acesso ao aborto seguro como um componente essencial da saúde sexual e reprodutiva, enquadrando sua garantia como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. A OMS classifica esse acesso como um pilar fundamental para a saúde, o bem-estar, a autonomia e a equidade de gênero, reconhecendo-o, assim, como um direito crucial.
No entanto, na América Latina e no Caribe, a maioria dos países mantém fortes restrições à autodeterminação das mulheres sobre seus corpos. Inclusive, países como República Dominicana, Nicarágua e El Salvador impõem uma proibição absoluta, mesmo em casos de risco à vida da mulher ou de estupro.
Atualmente, segundo dados das Nações Unidas, estima-se que na América Latina e no Caribe morram cerca de 7.200 mulheres por ano devido a complicações relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério. Além disso, nos últimos 20 anos, a região tem sido uma das que menos reduziu a mortalidade materna.