O tema da soberania voltou a ocupar lugar central no debate político brasileiro depois de anos restrito majoritariamente à esquerda comprometida com o horizonte anti-imperialista e socialista. Os ataques de Donald Trump e Marco Rubio contra a soberania e a independência política e econômica do Brasil expuseram a relação de dependência e subordinação que os Estados Unidos sempre exigiram dos países latino-americanos.
Não se trata, evidentemente, de um problema exclusivo do Brasil: todo o continente enfrenta a política intervencionista de Washington. Países com peso econômico, posição geográfica estratégica ou abundância de recursos naturais adquirem valor especial para o imperialismo. Nesse contexto, México, Colômbia, Brasil e Venezuela emergem como pilares regionais — seja de um projeto soberano e independente, seja como peças de reforço ao domínio imperialista.
Desde 2023, pela primeira vez na história da América Latina, esses quatro países são governados por presidentes que defendem um projeto de desenvolvimento soberano: Andrés Manuel López Obrador no México (2018–2024), Gustavo Petro na Colômbia (desde 2022), Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil (desde 2023) e Nicolás Maduro na Venezuela (desde 2013). A eleição de Claudia Sheinbaum Pardo em 2024, sucessora de López Obrador e primeira mulher presidente do México, ampliou o horizonte de uma possível construção de unidade regional soberana. Esse projeto é vital para superar a dependência estrutural, a pobreza e a insegurança política instaladas pela direita latino-americana historicamente alinhada ao imperialismo.
É nesse cenário que compreender o processo de reconstrução econômica e social proposto pelos governos progressistas mexicanos se torna indispensável para o campo democrático e popular brasileiro. Para contribuir nesse sentido, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou recentemente o dossiê México e sua Quarta Transformação, com o objetivo de apresentar suas principais características e implicações.
A Quarta Transformação no México
O Movimento de Regeneração Nacional (Morena), fundado formalmente em julho de 2011, denomina seu projeto político como a Quarta Transformação (4T). O nome remete à continuidade dos três grandes marcos de transformação nacional na história mexicana: a Guerra da Independência (1810–1821), as Guerras de Reforma (1857–1861) e a Revolução Mexicana (1910–1920).
A formação de Morena foi resultado de uma convergência entre forças políticas, mobilizações sociais massivas e militantes de diversos movimentos populares. Esses setores se uniram em torno da defesa da democracia e da crítica ao neoliberalismo. Diferentemente do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, o Morena não surgiu como um instrumento político direto das organizações da classe trabalhadora. Ao contrário, resultou de um processo de longa acumulação política que incluiu a experiência do Partido da Revolução Democrática (PRD), dirigido por López Obrador durante mais de duas décadas.
Hoje, o Morena é indiscutivelmente a principal força política do México. Nas eleições de 2024, obteve 59% dos votos, consolidando-se como um partido majoritário em nível nacional. Esse sucesso se explica, em parte, pela retirada de 13,4 milhões de pessoas da pobreza entre 2018 e 2022, segundo dados do Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (Coneval). Soma-se a isso uma estratégia de comunicação direta com o povo e de estímulo a mobilização popular.
A política da “mañanera”
Desde os tempos em que governou a Cidade do México, López Obrador implementou uma estratégia de comunicação popular: as conferências matinais de imprensa, conhecidas como “mañaneras”, realizadas de segunda a sexta-feira durante todo o ano. Essa prática foi mantida durante sua presidência e hoje é continuada por Sheinbaum.
A “mañanera” cumpre dois papéis fundamentais. Primeiro, garante transparência, responsabilidade e proximidade entre governo e população, contornando o monopólio midiático historicamente contrário ao Morena. Segundo, funciona como trincheira política contra campanhas de desinformação da direita, desmentindo notícias falsas e expondo as motivações de seus opositores. Essa combinação de informação pública e enfrentamento ideológico fortaleceu a imagem do governo como transparente e ético, ao mesmo tempo em que mobilizou setores populares em defesa de sua agenda.
Conflitos com os EUA
Apesar desse êxito interno, o governo mexicano enfrenta forte pressão externa, sobretudo dos Estados Unidos. O principal conflito é econômico, expresso nas tarifas de 25% a importações mexicanas que Trump anunciou em 2025, com efeitos ainda incertos sobre as duas economias por conta do alto nível de integração entre elas. Além do impacto imediato, essas medidas prenunciam uma renegociação difícil do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), especialmente em áreas como a soberania energética, em que a 4T recuperou controle sobre o petróleo e a eletricidade.
No campo da segurança, as tensões giram em torno principalmente do narcotráfico. Enquanto Donald Trump insiste em responsabilizar inteiramente o México pela epidemia de fentanil, a presidente Claudia Sheinbaum enfatiza a corresponsabilidade estadunidense, tanto pela demanda interna de drogas quanto pelo fluxo constante de armas provenientes dos EUA que alimentam os cartéis mexicanos. Em janeiro de 2025, Trump assinou uma ordem executiva classificando os cartéis mexicanos como organizações terroristas globais, incluindo grupos como o Cartel de Sinaloa e o Cartel Jalisco Nueva Generación. Para o governo de Sheinbaum, a medida é unilateral e busca legitimar a possibilidade de uso de força militar em território mexicano, configurando assim uma grave violação da soberania nacional.
Adicionalmente, os Estados Unidos sancionaram três instituições financeiras mexicanas sob a acusação de envolvimento em operações de lavagem de dinheiro. A medida, anunciada pelo Departamento do Tesouro em meados de 2025, foi duramente criticada pela presidente Claudia Sheinbaum durante uma de suas conferências matinais, as “mañaneras”. Segundo ela, a decisão foi tomada sem a apresentação de provas concretas.
As deportações em massa promovidas pela Casa Branca em 2025 também têm gerado fortes críticas e resistência por parte do governo da Quarta Transformação. A presidente Claudia Sheinbaum denunciou a política migratória de Trump, criticando as detenções de nacionais mexicanos.
Finalmente, em sintonia com sua postura intervencionista na América Latina, o governo Trump tem condenado as reformas constitucionais da Quarta Transformação, sob o pretexto de que prejudicariam a “segurança jurídica” e o investimento estrangeiro. A retórica é semelhante à usada para criticar o Brasil após os processos judiciais contra os conspiradores da tentativa de golpe de 2023.
Conclusão
O debate sobre soberania voltou ao centro da cena política latino-americana em meio ao avanço simultâneo de governos progressistas na região. O México, por meio da Quarta Transformação liderada pelo Morena, oferece um exemplo concreto de como enfrentar a pobreza, democratizar a comunicação e recuperar margens de soberania frente ao imperialismo estadunidense. Para o Brasil, compreender esse processo é crucial: não apenas como inspiração, mas como ponto de partida para uma necessária articulação regional. A unidade soberana em escala continental e sob direção dos pilares regionais (México, Colômbia, Venezuela e Brasil) pode, pela primeira vez na história, transformar a correlação de forças no continente e abrir caminho para um projeto de desenvolvimento soberano e popular.
*Stephanie Brito faz parte da Assembleia Internacional dos Povos
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.