O Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles promoveu, nos dias 25 e 26 de setembro, o evento “Olhares sobre o planejamento urbano e a adaptação climática das cidades”, na sede da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), na capital gaúcha. No primeiro dia, pesquisadores, organizações e movimentos sociais se reuniram para discutir a revisão do Plano Diretor da cidade e os impactos na sustentabilidade urbana.
A revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, prevista para 2020, só avançou em 2025. O processo foi adiado pela pandemia de covid-19, por disputas judiciais e também por entraves administrativos da prefeitura.
Somente no dia 9 de agosto de 2025, durante audiência pública no Auditório Araújo Vianna, a proposta do novo Plano Diretor Urbano Sustentável (PDUS) foi apresentada à população. O encontro teve como objetivo expor o conteúdo do projeto e recolher contribuições antes do envio do texto final à Câmara Municipal.
Instrumento fundamental de planejamento urbano, o Plano Diretor deve ser revisado a cada dez anos, conforme determina o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001). O atual Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) foi instituído em 1999 e revisado pela primeira vez em 2010, além de ter recebido alterações pontuais desde então.
O professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Paulo Soares, explicou que a mesa com organizações e movimentos sociais surgiu da necessidade de lançar “outros olhares” sobre a proposta do Plano Diretor de Porto Alegre. Segundo ele, a atual gestão aposta unilateralmente no mercado, especialmente o imobiliário, como principal força produtora e gestora da cidade.
“Isso traz grandes contradições entre o discurso da prefeitura e do plano e a prática revelada pelo texto proposto. O discurso de sustentabilidade e gestão democrática se ajusta às exigências legais e internacionais, mas não se sustenta se o mercado for a única força promotora do desenvolvimento urbano”, afirmou.
“Greenwashing” e fragilidades ambientais
Co-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Clarice Misoczky de Oliveira apresentou análise crítica baseada em nota técnica da entidade, que aponta contradições entre o discurso oficial e as propostas apresentadas.
Segundo ela, embora o plano se intitule “sustentável”, carece de mecanismos consistentes. “Os corredores verdes acabam funcionando como estratégia de greenwashing: pinta-se de verde no papel, mas sem efetividade real”, afirmou. A definição desses corredores, acrescentou, transfere responsabilidades ao setor privado e ignora medidas de contenção à expansão sobre áreas de mata nativa: “Consolida-se uma cidade compacta nas áreas centrais e difusa no território, reforçando a lógica do mercado imobiliário.”
Oliveira destacou o adensamento urbano como uma das principais contradições. “O discurso de que a verticalização reduz custos não se confirma. O metro quadrado em empreendimentos recentes chega ao dobro da média da cidade. É especulação, não habitação social.” Ela lembrou que a expectativa por novos índices já valorizou terrenos em bairros como Bela Vista e Chácara das Pedras, comparando a situação à crise habitacional de Londres, “que atingiu até a classe média”.
Outra preocupação é a falta de dados sobre infraestrutura. “A prefeitura informa apenas o número de domicílios conectados, não o potencial das redes. Promete-se que a venda do solo criado financiará investimentos, mas com tantas isenções, há dúvidas sobre recursos”, expliou.
Na avaliação da presidente, o plano altera profundamente a configuração da cidade e se apropria de modelos internacionais de forma simplista. Areas como Três Figueiras, por exemplo, que hoje têm limite de nove metros, poderão receber prédios de 18 metros, Petrópolis vai a 60 metros e o Centro Histórico, até 130 metros. “A vida urbana é muito mais complexa que a ideia de cidade de 15 minutos. O que se promete não se realiza”, avaliou.
Ela também criticou a fragmentação do planejamento em planos locais e operações consorciadas, a baixa participação social e retrocessos como a mudança na composição do Conselho do Plano Diretor e a criação de fundos imobiliários com imóveis públicos. “É um modelo mercadófilo, que atende ao setor imobiliário em detrimento do interesse coletivo. O discurso oficial pinta de verde, promete participação e inclusão, mas favorece o mercado e enfraquece o interesse público”, concluiu.

“A participação popular ainda não se consolidou como direito fundamental”
A advogada Amanda Cardoso, do coletivo AtuaPoA, centrou sua fala na falta de participação social, que considera essencial para “virar a mesa”. Ela lembrou que a Constituição e o Estatuto da Cidade asseguram gestão democrática, mas que em Porto Alegre “regras legais não faltam”. “O que vemos são governantes que tudo desrespeitam, com conivência de parte do Ministério Público e do Judiciário”, analisou.
Segundo Cardoso, a última eleição válida do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) ocorreu em 2018. A de 2024 foi marcada por irregularidades — transporte de eleitores, cédulas adulteradas e mudanças de critérios, e acabou anulada.
Ela criticou ainda as conferências realizadas em horário comercial e sem plenárias nas regiões de planejamento, restringindo a participação das periferias. O ápice, disse, foi a audiência pública de 9 de agosto. “Proibiram a entrada após as 11h, mesmo com auditório vazio. O secretário falou longamente e cada cidadão teve apenas dois minutos. Foi mais propaganda que debate. E não é revisão, é um novo plano.”
Cardoso também apontou que mais de 200 atividades listadas pela prefeitura como participação popular ocorreram sem divulgação e em horários restritivos. “Todo o processo foi alvo de denúncias, mas o Ministério Público arquivou sem investigar e o Judiciário raramente acolheu.”
A entrega do plano à Câmara, em evento fechado, reforça, segundo ela, a necessidade de mobilização. “A participação popular ainda não se consolidou como direito fundamental. É preciso traduzir esse conteúdo em cursos populares nas regiões da cidade. O papel de entidades e universidades é fundamental para fortalecer uma democracia real e participativa”, defendeu.
Mobilização comunitária no extremo sul
A ativista Michele Rihan Rodrigues, do movimento Preserva Arado, resgatou a mobilização que barrou o projeto de urbanização da Fazenda do Arado Velho, no extremo sul da Capital. O terreno, de mais de 400 hectares, chegou a ser cotado para abrigar o “maior empreendimento da cidade”, com condomínios privados em áreas de campos e matas.
Segundo ela, a comunidade se articulou diante da ameaça e, com apoio de universidades e ambientalistas, contestou o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), considerado fraudulento. O Ministério Público propôs duas ações judiciais que até hoje impedem a instalação dos condomínios. “Foi um exemplo de mobilização da sociedade que conseguiu frear esse intento de expansão urbana desordenada”, afirmou.
Rodrigues criticou o fato de a prefeitura seguir defendendo a urbanização da área, mesmo sendo zona natural de amortecimento de cheias, como comprovado nas inundações de 2023 e 2024. Para ela, a revisão do Plano Diretor fragiliza os mecanismos de controle: “Condomínios de até 10 hectares poderão ser construídos sem autorização. É um horror. O caos urbano está sendo institucionalizado”.
Ela também destacou a precariedade de infraestrutura no extremo sul: transporte público insuficiente, falta de saneamento e ausência de obras estruturantes. “O resultado é um caos urbano. Hoje a maioria depende de carro particular”, disse.
Sobre a participação social, avaliou que os espaços são paupérrimos. “As reuniões do CMDUA impõem barreiras à fala dos cidadãos, enquanto representantes da construção civil têm ampla liberdade. O fórum regional de planejamento nunca funcionou de fato.”
Rodrigues defendeu que apenas a articulação entre movimentos comunitários e ambientais pode enfrentar o poder econômico do setor imobiliário. “Vivemos episódios de violência e intimidação, inclusive processos judiciais. Isso afasta parte da comunidade. Mas seguimos insistindo: é preciso garantir voz cidadã e qualificar a participação, especialmente das comunidades mais vulneráveis.”
“Plano Diretor serve à especulação e ignora a realidade das comunidades”
A coordenadora da conferência estadual e integrante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Ceniriani Vargas da Silva (Ni), apontou que a revisão do Plano Diretor tem servido aos interesses da especulação imobiliária. “Praticamente tudo hoje é judicializado, de medicamento a vaga em creche ou plano diretor. Durante a pandemia, a prefeitura aprovou planos de revitalização do Centro e do Quarto Distrito ferindo o princípio da participação social.”
Ela ressaltou a complexidade técnica do plano como barreira à população e lembrou que quilombos urbanos e retomadas indígenas, como a da Família Silva e a retomada Guarani, são diretamente ameaçados. “Mesmo quando levamos essas pautas à consultoria contratada, nada foi considerado.”
Ni criticou a omissão diante de temas como risco, saneamento e moradia popular. “O Plano não prioriza as 80 mil pessoas em áreas de risco, nem as famílias sem saneamento ou que perderam suas casas nas enchentes. O próprio plano de riscos nem foi finalizado, mas já avançam em propostas de adensamento e valorização imobiliária.”
Ela relatou sua própria experiência de infância em ocupação no Morro Santana, transformado em área de condomínios privados. “Quando eu era criança, descia trilhas de mato para ir à escola. Hoje tudo virou prédio, e os lagartos que antes corriam na mata agora tentam sobreviver no asfalto.” Para a liderança, a produção social da moradia pelas cooperativas populares deveria ser valorizada. Citou o Assentamento 20 de Novembro e o projeto 2 de Junho, que enfrentaram anos de burocracia. “Se fosse um empresário, o prefeito estaria puxando o saco. Mas nós sofremos criminalização.”
Ni denunciou ainda o esvaziamento do Fundo Municipal de Habitação e a falta de transparência do Fundo de Gestão de Território. “É uma caixa-preta sem controle social, usada para pintar fachadas de prédios abandonados em vez de garantir moradia popular.”
Ela relacionou o debate urbano à crise climática e ao peso do cuidado assumido por mulheres em condições precárias. Também criticou a redução, sem justificativa, do cadastro de famílias sem moradia: de 64 mil para 32 mil. “Foi uma atualização virtual que excluiu milhares de famílias. O Plano fala em habitação de interesse social, mas não define território nem recursos. Porto Alegre segue ganhando títulos como ‘melhor capital para negócios’, mas sem responder às necessidades de quem mais precisa”, concluiu.
Para Soares, temas como moradia, meio ambiente e preservação passam rapidamente na proposta, que parece mais preocupada em facilitar a vida do mercado do que em promover equidade e justiça social. “Se deixarmos apenas para o mercado esse papel, teremos uma cidade mais desigual, pois a produção imobiliária funciona como investimento e não como política social. Por isso consideramos fundamental escutar os movimentos, que trazem outra visão de cidade, de planejamento urbano e de plano diretor.”
O Brasil de Fato entrou em contato com a prefeitura de Porto Alegre para solicitar um posicionamento. Não houve retorno até a publicação. O espaço permanece aberto para manifestação.