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Adriana Souza é a vereadora eleita mais bem votada de Contagem (MG), professora de História, ativista socioambiental do SOS Vargem das Flores e co-fundadora do Coletivo Com Elas

Bolsonaro condenado: é preciso estar atento e forte

Condenação de Bolsonaro abre uma brecha histórica para sepultar a cultura antidemocrática

Quem me conhece sabe da minha paixão pela música “Divino, maravilhoso” de Caetano e Gil, eternizada pela voz insubmissa e irresistível de Gal. E ao refletir sobre esse momento do julgamento e condenação de Bolsonaro, seus versos poéticos não saíram da minha cabeça.

A começar pelo início. “Atenção ao dobrar uma esquina/uma alegria, atenção, menina”, ou seja, um momento de tensão e ao mesmo tempo de alegria. Em seguida, o alerta “atenção/Tudo é perigoso”, e apesar do perigo, “Tudo é divino, maravilhoso”. Pois bem, vivemos uma quadra histórica perigosa, difícil, e, ao mesmo tempo, que pode nos deixar um legado democrático maravilhoso, caso saibamos maneja-la.

Pra mim, o fato político da condenação de Bolsonaro a 27 anos e 3 meses, carrega essa ambiguidade da música: da força da resistência e da divina esperança em meio a um momento de grave crise política potencializada pelos ataques imperialistas de Trump. Apesar da euforia geral, o contexto nos exige muita atenção, responsabilidade e força, como nos sugere a música que insiste em me deixar em estado de alerta.

Deixando a poesia de lado, vamos aos fatos. O atual contexto político brasileiro é marcado por um momento de rara e crucial importância histórica: o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados por uma tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.

A repercussão da alegação final da Procuradoria-Geral da República (PGR) revela que o país se encontra em uma encruzilhada. Não se trata apenas de uma batalha no terreno judicial, mas também de uma disputa política e simbólica pela superação do golpismo enquanto cultura e expediente político das elites e dos setores militares no Brasil.

Pela primeira vez na história republicana do Brasil, um ex-presidente e militares de alto escalão vão para o banco dos réus, sendo julgados por crimes contra o Estado Democrático de Direito. Este cenário é uma ruptura direta com o histórico de impunidade característico dos crimes contra a democracia no país.

Apesar da justa sensação de alívio e alegria por estarmos presenciando a justiça sendo feita, consideramos inadequado que as nossas reações se restrinjam ao deboche e ao excesso de euforia diante da condenação de Bolsonaro e seus comparsas. A prisão dos golpistas precisa ser entendida na dimensão que realmente tem: uma manifestação importante e histórica do amadurecimento da legalidade democrática brasileira. Mas de longe, é um ponto final à ameaça golpista.

O golpismo como cultura política e permanência histórica

Em primeiro lugar, o golpismo é uma cultura e um método político historicamente enraizado em nossa nação, que transcende a responsabilização de indivíduos. A condenação dos golpistas e a luta contra qualquer medida de anistia — seja ela total ou “light” (como em discussão no Congresso Nacional) — são condições necessárias, mas não suficientes para a superação do golpismo.

Isso se deve ao fato de que militares e classes dominantes permanecem inconformados com o poder civil e com a democracia, não havendo elementos que indiquem uma mudança substancial nessa posição. Além disso, a submissão destes setores ao imperialismo estadunidense – sempre peça chave nos golpes de estado na América Latina – indicam que estarão sempre dispostos à ruptura institucional, caso a Casa Branca assim deseje.

A trajetória política brasileira é estruturada por uma sucessão de eventos que reiteram a persistência do expediente golpista, frequentemente orquestrado por figuras internas ao próprio sistema estatal em aliança com uma potência imperialista. Esse padrão remonta a fundação da nação, posterior à independência, com o fechamento da Assembleia Constituinte em 1823 e o Golpe da Maioridade em 1840, este último realizado em desrespeito à Constituição vigente.

A Proclamação da República em 1889, liderada por Deodoro da Fonseca, foi outro golpe que instituiu a Primeira República. E logo depois, Deodoro fechou o Congresso em 1891, e seu sucessor, Floriano Peixoto, estendeu seu próprio mandato, evidenciando o uso do poder para além dos limites constitucionais.

A fundação do estado moderno brasileiro não superou essa cultura. O suicídio de Vargas em 1954 adiou um golpe que parecia iminente, mas os golpistas seguiram atuando, como por exemplo, nas tentativas de impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955 e rebeliões como as de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959).

Os envolvidos nesses eventos, quando julgados, foram anistiados com a justificativa de “pacificar o país”, mas logo em seguida retomaram sua atuação golpista e tornaram-se figuras chave no Golpe Militar de 1964, que resultou em 21 anos de ditadura.

A Lei da Anistia de 1979 também protegeu militares de acusações por tortura e assassinato. E mais uma vez a anistia foi peça fundamental da impunidade, mantendo seu padrão como ferramenta de uma tradição golpista que seguia impune em nossa história.

A redemocratização que fundou a Nova República, com base na Constituição de 1988, não teve força para superar definitivamente a cultura golpista. Nenhuma reparação histórica foi realizada, como ocorreu em outros países com situações similares – caso da Argentina e Uruguai que julgaram e condenaram os criminosos de suas ditaduras.

Assim, a certeza da impunidade abriu espaço, em 2016, para o golpe parlamentar e midiático, disfarçado de impeachment, que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República e deu lugar para a ascensão da extrema-direita, consolidando o golpismo como uma herança maldita difícil de se livrar.

A ausência de punição e justiça em defesa da democracia junto à baixa memória social do perverso passado autoritário, dificultam a superação dessa cultura antidemocrática.

Aqui reside a relevância dos julgamentos em andamento no STF contra Bolsonaro e seus apoiadores. Eles representam uma chance de romper com a impunidade e construir um novo imaginário, onde a democracia seja inegociável.

Mas para ir além da sensação de que a “justiça foi feita”, precisamos alertar a todos que a comemoram prematuramente. O julgamento e condenação de Bolsonaro e seus comparsas abre uma brecha histórica para pautarmos e atuarmos no sentido de reformar as instituições estatais, dentre elas, as Forças Armadas.

“É preciso estar atento e forte”, já nos alertava Gal em sua poesia cantada. A condenação do Bolsonaro não é a última página, é a inauguração de um novo capítulo da disputa.

E, sobretudo, criar uma nova maioria na sociedade que tenha capacidade de se defender das investidas autoritárias, porque nenhum golpe é executado sem uma base social que o apoie, por menor que seja.

Os ventos do Norte 

Agora, a batalha da anistia tende a ser o centro da agenda política do país, e se os setores democráticos não tomarem as devidas providências, as eleições de 2026 podem se transformar em um plebiscito sobre uma suposta “pacificação do país”, qual seja: a de garantir a impunidade por meio da farsa da anistia.

A condenação de Bolsonaro não garante a sua permanência na prisão se a vitimização prevalecer sobre a responsabilização no seio da sociedade.

Os setores pró-anistia no Congresso Nacional já estão se movimentando, e se tiverem apoio social, podem dobrar a aposta. A Casa Branca pode aproveitar esse contexto para elevar a pressão contra o governo Lula, ampliando as operações da guerra híbrida em curso contra o Brasil e aprofundar a estratégica de desestabilização permanente dos estados nacionais não completamente subordinados a Washington.

Do ponto de vista da geopolítica, o Brasil é um dos alvos principais do imperialismo estadunidense pois é o elo do BRICS que Trump deseja quebrar para enfraquecer o projeto multipolar, gestado no Sul Global.

É preciso ter a vigilância necessária com as possibilidades de cenários que se abrem com a condenação de Bolsonaro e do golpismo pelo STF. Algumas perguntas que podem nos fazer refletir:

Os EUA reconhecerão qualquer resultado das eleições de 2026? É possível que Eduardo Bolsonaro se torne um “Guaidó” tupiniquim ungido pela Casa Branca? Como se comportarão os militares e os banqueiros neste contexto? Como será a postura das Big Techs e da grande imprensa? Quais instrumentos temos para organizar uma resistência soberana no Brasil?

São questões que nos provocam desde já e merecem a nossa atenção.

Brasil Soberano x traidores da pátria

Não há indícios de que a temperatura política vá baixar, pelo contrário, as recentes mobilizações bolsonaristas em 7 de setembro confirmaram as intenções da extrema-direita, já evidentes no episódio do “tarifaço de Trump”: eles estão dispostos a apoiar os interesses estadunidenses no Brasil para minar as instituições democráticas e o projeto do Governo Lula.

Em outras palavras, a intervenção estrangeira contra o Brasil possui uma base social significativa e lideranças políticas dispostas a trair os interesses nacionais: se aliar aos inimigos e irem às últimas consequências do expediente golpista, contando com o apoio direto do imperialismo. Os traidores da pátria não têm nenhum pudor em bradar a sua traição.

É nesse contexto que a soberania nacional brasileira passa a ser o centro do debate para além da luta entre “esquerda” e “direita”. As fronteiras de demarcação ideológicas mudaram de qualidade após o tarifaço, agora é a disputa entre soberania e submissão. O Governo Lula, ao assumir o lema “Brasil Soberano”, criou um novo referencial para a nossa pedagogia política, uma ideia-força com ampla capacidade de conscientização e organização em grande escala.

Quem pode ser contra a soberania nacional? Somente aqueles que, com desonra, já selaram seu destino com o poder estrangeiro e traíram a pátria.

Agora, cabe aos movimentos, partidos do campo democráticos, a intelectualidade, as instituições do Estado e da sociedade, assumirem essa ideia-força. O campo da defesa da soberania nacional é mais amplo e necessitará de muita capacidade de direção para ser manejado. Nesse sentido, qualquer sectarismo deve ser combatido, pois a defesa intransigente da soberania do Brasil é o único radicalismo consequente neste momento.

Diante do cenário golpista e de luta antiimperialista, ser amplo politicamente é a forma possível de ser radical. O papel das esquerdas neste contexto é central. Caberá a nós a tarefa de liderarmos a defesa da nação contra os ataques externos e os conspiradores internos, assumindo a capacidade orientadora de um campo de forças heterogêneo e contraditório.

Isso não é tarefa fácil e não se resolve imediatamente. Entretanto, precisamos nos preparar imediatamente para essa batalha. Nosso futuro como país depende dela.

A luta pela soberania e democracia no dia a dia da cidade

Junto com a ideia-força “Brasil Soberano”, temos de disputar o sentido social da soberania. A luta contra o golpismo e o autoritarismo não se restringe à esfera judicial ou política. Ela se expande para as ruas e para a economia. A agenda de políticas públicas, focada em direitos sociais e justiça econômica, não é um tema secundário; é a resposta estratégica de longo prazo para fortalecer a democracia e a soberania.

O golpismo de extrema-direita se alimenta de sentimentos de frustração, ressentimento e alienação, muitas vezes exacerbados pela precarização do trabalho e pela injustiça social. Enquanto essas condições permanecerem, permanecerá também a possibilidade de utilização da justa insatisfação social para a desestabilização da democracia.

Justiça social é, em si, um ato de defesa da democracia.

Pautas de forte apelo popular, como o fim da escala 6×1, a redução da jornada de trabalho sem corte de salário e a Reforma Tributária — que inclui a taxação de grandes fortunas e a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais —, são cruciais para conectar a defesa da democracia e da soberania com a realidade diária das pessoas.

Nesse contexto, o Plebiscito Popular por um Brasil mais Justo é uma campanha de suma importância, devendo ser amplamente promovida como ferramenta de trabalho de base e de diálogo direto com as necessidades dos trabalhadores mais vulneráveis. Apenas quem compreende o que pode perder com o fim da democracia e da soberania estará disposto a defendê-las. É por isso que vamos intensificar nossas ações de rua do mandato atrelado ao plebiscito popular e às suas pautas.

Cabe lembrar que nosso gabinete tem sido uma importante trincheira da luta por soberania em Contagem. Durante a semana e aos finais de semana estamos com o Gabinete de Rua, uma intervenção do nosso mandato que procura retomar ações políticas bem-sucedidas de gerações petistas anteriores na cidade, como a Prefeita Marília quando foi vereadora e deputada e do mandato da nossa companheira Letícia da Penha. Temos distribuído nosso jornal, buscando manter um diálogo direto com a população e levado as urnas de votação do plebiscito, dialogando, mobilizando e politizando o debate em nossa cidade.

Ações políticas desta natureza combinam algo caro ao nosso desafio atual, que é combinar o binômio redes e ruas.

Não é mais possível deixarmos as ruas desocupadas. A política deve ocupar o cotidiano da cidade. Como bem nos lembram Marilia Campos, Margarida Salomão e o companheiro Edinho, é preciso recuperar o espírito municipalista no seio do Partido dos Trabalhadores.

Ao mesmo tempo em que realizamos essas ações, jamais deixamos de ocupar e realizar ações no território digital. Nosso mandato, nesse sentido, tem conseguido trazer bons resultados, na medida em que consegue defender o governo e o legado da Prefeita Marília Campos e divulga as posições e ações do mandato, atingindo uma parcela considerável de visualizações nas redes e impacto presencial na cidade.

Em suma, a condenação de Bolsonaro nos abre uma brecha histórica para sepultar a cultura antidemocrática e golpista em nosso país, mas isso exigirá de nós muita responsabilidade, maturidade e aprimoramento de nossa capacidade organizativa e de luta diante do cenário de defesa da nossa soberania.

Portanto, a nossa celebração deve se dar nas ruas por meio de muito diálogo, politização da defesa do Brasil para os brasileiros e de uma pedagogia política da escuta e do respeito.

O que não nos impede de nos alegrar com os avanços que todo esse processo representa para nossa luta democrática, sem perder a perspectiva da longa batalha que teremos pela frente.

Esse é o desafio que devemos estar à altura de responder.

Adriana Souza é militante, mãe, professora de história e vereadora mais votada de Contagem.

Leia outros artigos de Adriana Souza em sua coluna no Brasil de Fato.

Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

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