O Pix, concebido pelos técnicos do Banco Central do Brasil, como sabemos, é um meio de pagamento como o talão de cheque, o cartão de crédito ou o cartão de débito, mas tem especificidades importantes. Ele permite transações rápidas, é gratuito, seguro para os que recebem pagamentos nele, e estas transações são feitas reduzindo enormemente a intermediação bancária.
Neste sentido, ele tem vantagens internas para o país e vantagens na articulação internacional entre os países. Do ponto de vista interno ele inclui melhor as pessoas sem acesso ou com difícil acesso ao sistema bancário. Sem dúvida, a inclusão social efetiva só se consegue a partir do rendimento recebido e dos empregos, já que são a base para que as pessoas possam ter fundos monetários para usar bem o Pix. Mas o Pix facilita a vida dos que não podem pagar os custos do cartão de crédito ou as transferências e serviços bancários. Propicia, por exemplo, o recebimento de pequenos prestadores de serviços com a segurança do pagamento recebido.
Ele é sobretudo uma forma digitalizada de meio de pagamento e, com o progresso da digitalização, é de se esperar um funcionamento cada vez mais adequado à realidade do país e à regulação estatal da dinâmica monetária. Ao invés de privado, como as ditas moedas digitais, o Pix é um meio de pagamento público em real, moeda brasileira garantida e controlada pelo Banco Central, que consegue evitar flutuações acentuadas no seu valor, evitando o caráter especulativo das ditas criptomoedas privadas.
O progresso tecnológico nesta área digital tem sido enorme e é possível antever novas formas de modernização no Pix e de avanços na sua utilização.
Os economistas discordam do papel da moeda no estímulo à produção real de bens e serviços e à atividade econômica em geral. A ortodoxia neoliberal, por exemplo, não vê a possibilidade de estimular tal produção de forma duradoura a partir de expansão monetária. Segundo eles, a moeda é neutra e sua expansão ou contração só influencia de forma permanente o nível geral de preços, provocando inflação ou deflação, sem deixar efeitos duráveis sobre a atividade produtiva – produção, renda e empregos.
Para os heterodoxos, entre os quais me incluo, é possível, sim, a moeda ampliar ou restringir a atividade produtiva real de forma permanente, influenciando a criação de emprego e renda. A modernização do Pix, neste sentido, tende a permitir maior sensibilidade quanto ao que ocorre na dinâmica monetária da economia, orientando melhor a condução da política monetária quando o objetivo for estimular a atividade econômica.
Já do ponto de vista internacional, esse progresso vem se mostrando importante para a articulação econômica entre os países, abrindo novas possibilidades de operar com moedas alternativas ao dólar. Transferências via Pix já estão sendo feitas em vários países e o Brasil já compartilhou com outros países um conjunto de documentos, especificações e instruções que definem seu funcionamento.
Pix e a geopolítica
Outros meios de pagamentos digitais também já existem, e estão sendo desenvolvidos. Quando estes meios de pagamentos digitalizados estiverem articulados, transações podem ser realizadas fora do sistema Swift – rede global de comunicação para transações financeiras intermediadas por bancos e instituições financeiras internacionais, que não permite transações rápidas nem gratuitas, e requer intermediação bancária, ao contrário do Pix. Ao lado disso, pode ser e já foi usado pelos Estados Unidos para sanções a outros países como Rússia e Irã.
O Pix concorre em vantagem com os cartões de crédito como Visa, Mastercard, Apple Pay, Google Pay e outros, porque não paga taxas de transferência.
O fortalecimento de alternativas como estas no âmbito do Brics tem incomodado os Estados Unidos (EUA), pois ameaça a primazia do dólar nas transações internacionais. A erosão dessa hegemonia está diretamente ligada à perda relativa do poder econômico norte-americano. O valor e a centralidade de uma moeda dependem da força econômica do país que a emite. No caso dos EUA, essa força vem diminuindo, especialmente no campo tecnológico, e relativamente à China. Nesse contexto, o tarifaço e até críticas ao Pix revelam um uso cada vez mais explícito de razões geopolíticas.
Há décadas os EUA vêm promovendo, estimulando e até impondo o neoliberalismo ao mundo, colocando-se como campeão de competitividade, em meio a mercados cada vez mais liberalizados, onde a concorrência passa a ser mais acirrada. As medidas e sanções propostas por Trump, porém, procuram reverter este processo – algo difícil para os demais países e para os próprios EUA.
Trump alega, entre outros motivos, que a situação dos EUA piorou, em função do papel do dólar como moeda internacional de reserva. Segundo ele, a alta demanda de dólares valoriza-o excessivamente, barateando as importações e prejudicando a produção interna. Mas é preciso dizer que o privilégio de ser a principal moeda de reserva internacional requer que os ganhos de produtividade sejam também superiores aos dos demais países, inclusive para compensar tal sobrevalorização. Ora, o que temos visto é a perda destes ganhos relativos de produtividade, em especial nas áreas de tecnologias como as digitais e particularmente com a China.
Nesse cenário, a reação dos EUA ao Pix revela muito mais do que disputas comerciais: trata-se de uma questão de soberania monetária e digital. Soberania digital porque o Brasil dispõe de um sistema de pagamento digital moderno, com tecnologia própria e adequado à realidade brasileira. Soberania monetária, porque o uso desta tecnologia permite escapar da dominação do dólar, evitando regras e sanções impostas pelos EUA, assim como ampliando as relações com outros países com objetivos comuns de forma mais autônoma.
*Maria de Lourdes Rollemberg Mollo é professora de Economia da Universidade de Brasília.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.