Há um ano, a população do estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, enfrentava um dos piores – se não o maior – desastres socioambientais da sua história. Nos últimos dias de abril e durante o mês de maio de 2024, os volumes de chuva registrados no estado foram muito altos na maioria das regiões, situação sem precedentes em mais de um século de medições em diferentes municípios, segundo noticiou a Metsul, instituto de Meteorologia. Localidades de bacias hidrográficas importantes, dos quais diversos rios deságuam na região metropolitana de Porto Alegre, tiveram facilmente médias de 400mm a 800mm de chuva acumulada no período, alcançando impressionantes 1.023mm na estação meteorológica de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Em menos de quinze dias choveu o equivalente ao que costuma chover durante cinco meses no estado.
Os resultados puderam ser acompanhados por todo o Brasil pela mídia, inclusive com transmissão ao vivo feita por âncoras famosos dos canais de TV. As imagens do caos climático correram o mundo. Cidades ficaram inundadas com as cheias dos rios e deficiência no sistema de proteção e de escoamento da água das chuvas, comunidades ilhadas devido a deslizamentos de terra e estradas destruídas, prejuízo econômico e impacto ao meio ambiente. Aproximadamente 537 mil pessoas tiveram que deixar suas casas; 80 mil precisaram recorrer a abrigos públicos; 184 pessoas morreram e outras 25 ainda seguem desaparecidas. Cerca de um a cada cinco habitantes do RS foram afetados pelas enchentes. Das 497 cidades que existem no estado, 478 foram atingidas.
Passado um ano, a histórica enchente ficou na memória para alguns mas, para muitos, ainda é uma realidade vivenciada diariamente. A classe trabalhadora, a população empobrecida, pequenos comerciantes, territórios indígenas e quilombolas, assentamentos da reforma agrária e camponeses seguem tentando recuperar suas perdas e reconstruir minimamente suas vidas. Para se ter uma ideia, no final de abril deste ano, quase 400 pessoas permaneciam em abrigos públicos por não terem para onde ir, a grande maioria na região metropolitana. O governo estadual quer esvaziá-los até o final de maio, mas utilizando soluções ainda mais precárias, como a estadia solidária e as casas temporárias, o que acaba por estender a agonia e uma insegurança que parece não ter fim. De recurso habitacional mais efetivo existe o programa do governo federal de compra de casa com verba pública (chamado de compra assistida), porém diversas famílias reclamam que não conseguem acessá-lo devido à exigência de comprovar documentação, além de o processo levar meses.
Resistir para existir: enchente escancara luta dos territórios de vida
A Aldeia Mbyá Guarani Pindó Poty sofre, há anos, com alagamentos no bairro Lami, no Extremo Sul de Porto Alegre (RS). Os guaranis não contam mais quantas vezes reconstruíram suas casas, perderam suas roupas e utensílios, plantios, animais domésticos e os que criavam para se alimentar. Na grande enchente de 2024, não foi diferente. A aldeia ficou debaixo d’água com o transbordamento do Arroio Lami, que passa ao lado do local. Temporariamente, as famílias foram abrigadas pelos parentes Kaingang da Aldeia Van-Ká, no mesmo bairro da Capital gaúcha. Quando retornaram, contaram com uma rede de solidariedade e de doações para reconstruir suas vidas novamente.
Um levantamento colaborativo, realizado de forma conjunta pelo CIMI Regional Sul, Comissão Yvyrupa Guarani (CGY), FLD/Comin/CAPA e CEPI/RS, indicou que mais de 80 comunidades e territórios indígenas foram diretamente afetados, alguns com extrema gravidade, nos meses de abril e maio passados. A CGY promoveu uma campanha de arrecadação financeira e de donativos na época, resultando na distribuição de 20 toneladas de alimentos para 37 aldeias, que também receberam água potável e itens básicos, como cobertores e colchões. Segundo relatório divulgado pela Comissão Guarani em junho de 2024, foram alcançadas 674 famílias, somando mais de 3.300 pessoas, em diversas regiões do estado do Rio Grande do Sul.
A campanha da CGY contou com ampla colaboração da sociedade civil, entre parceiros, pessoas, coletivos e organizações, muitas de fora do Brasil. Além dessa, a Amigas de Terra Brasil participou de outra frente, junto com a Rede Coop, pela qual entregamos cestas de alimentos da agricultura camponesa às famílias Guarani da Aldeia Yy Ryapu, em Palmares do Sul, no Sul do estado. Essas iniciativas resumem bem o que se viu em boa parte do período de emergência da enchente: uma rede solidária sustentada pela sociedade já organizada e por tantos indivíduos que, frente à necessidade urgente, organizaram-se. “Nenhuma das Tekoá [aldeias] atingidas teve apoio das autoridades até agora. Nem com alimentação, nem com nada. Aí é difícil. Quando aconteceu essa tragédia da enchente, conseguimos, através do apoio de parceiros indigenistas e de organizações de fora do país, como da Alemanha”, relatou Helio Wherá, da CGY.
A enchente escancara que os governos estão cada vez mais afastados dos territórios indígenas. Seja em atender a principal demanda de muitos deles, que é a demarcação da terra, quanto em fornecer a infraestrutura necessária e o acesso a serviços humanos básicos, como de saúde e saneamento, para que vivam. Em nível federal, vemos uma tentativa do Governo Lula tentar chegar nos locais, mas ocorre de forma muito lenta. A Aldeia Pekuruty resiste de forma precária há 16 anos às margens da BR 290, em Eldorado do Sul (RS), e na enchente de 2024 foi alagada, junto com cerca de 80% da cidade. O pouco que sobrou de seus pertences foi retirado por funcionários do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), tendo que recomeçar praticamente do zero e contando apenas com a ajuda de parceiros.
Assim como a Pindó Poty, a Pekuruty aguarda a demarcação para que possa se instalar em local seguro. “O governo tem terra, será que pra índio não quer dar, ou quer matar tudo? O branco pensa com dinheiro. Aí compra animal, compra vaca, terra, planta tudo, colhe dinheiro. Vende água, vende peixe. De terra, tem 2 mil, 3 mil hectares. E aqui [na aldeia], tem 400 hectares, cavalos, vacas, tem terra. Será que não dá um pouquinho, para poder morar índio?”, questionou o cacique Estevão Kuaray.
Os efeitos da emergência climática são mais um, entre tantos desafios que os povos indígenas enfrentam diariamente para sobreviver. A Retomada Indígena Tekoa Yjerê, na Ponta do Arado, margeada pelo rio Guaíba na capital gaúcha, foi totalmente atingida pela enchente. Na ocasião, as famílias, constantemente atacadas por um empreendimento imobiliário que quer se instalar no local, perderam tudo, e o cacique Timóteo Karay Mirim refletiu sobre a relação dos povos com a natureza, que vem sendo destruída pela sociedade capitalista dos não indígenas (juruá). Na mesma época, na Aldeia Tekoá Jatay´ti (Cantagalo), situada em Viamão (RS), Jaime Vherá Guyrá, que foi cacique do território, evidenciou a importância das terras para os indígenas e a relação das terras com a emergência climática.
“Desastre” virou oportunidade de lucro para os capitalistas e as grandes empresas
Desde 2019 pelo menos, acompanhamos um pouco do drama enfrentado por famílias do loteamento Guaíba City, onde vivem em torno de 280 famílias, entre as cidades de Charqueadas e Eldorado do Sul, próximo ao Rio Jacuí. A comunidade e o Assentamento da Reforma Agrária Apolônio de Carvalho, do MST (Movimento Sem Terra), corriam sérios riscos com o projeto de instalação da mina de carvão a céu aberto da Copelmi, que seria a maior do Brasil. O alagamento severo da região em 2024 foi a pá de cal para a empresa desistir do empreendimento neste ano, o qual já enfrentava embargo judicial e forte resistência popular.
É uma vitória sem dúvida, mas Guaíba City segue abandonada. A comunidade, que estava desassistida há anos pelo poder público, vivenciou outro nível de desamparo durante a enchente, quando ficou ilhada. De acordo com os moradores, não houve aviso sobre a inundação. Perderam seus pertences e animais domésticos, contabilizaram prejuízos com o alagamento de suas casas e pequenos comércios. Após o período da enchente, em visita à região, registramos animais mortos e muito lixo nas ruas, estradas estragadas e equipamentos públicos, como posto de saúde, desativados. A comunidade ainda pedia a reconstrução de uma ponte para se deslocar. As respostas das prefeituras foram lentas.
A cidade onde fica Guaíba City e a Aldeia Guarani Pekuruty é Eldorado do Sul que, proporcionalmente, foi o município mais atingido pela enchente em todo o Rio Grande do Sul. Dos cerca de 42 mil habitantes, 34 mil foram atingidos. A estimativa é que 80% das residências tenham sido danificadas, e toda a área urbana esteve alagada. Muitos moradores que saíram durante a enchente desistiram de retornar à Eldorado por insegurança e falta de perspectiva. Nessa mesma cidade, a população que ficou tenta reconstruir suas vidas sem muito recurso e dependendo de retornos demorados dos governos,que talvez nem cheguem como prometido, enquanto o governo do RS anunciou a instalação do maior complexo de infraestrutura digital da América Latina pela empresa Scala, num dos poucos terrenos que não foram alagados. A previsão é de que essa “cidade de datacenters” esteja entre os maiores investimentos privados da história do estado e consuma mais energia que a gerada pela quarta maior hidrelétrica do Brasil.
Na cidade vizinha, Guaíba, que também sofre com a enchente de 2024, a fabricante de celulose CMPC confirmou, no final do ano, que pretende seguir com o projeto bilionário de construir um novo parque industrial na região e ampliar as áreas de plantios de monocultivo de eucalipto. As monoculturas de árvores geram perda da biodiversidade e aumento do déficit hídrico onde são implementadas, ilhando territórios de vida cercados por estes projetos de morte. As fábricas de celulose, altamente utilizadoras de água, também são grandes poluidoras, como denunciam as mulheres camponesas assentadas no seu entorno. Além disso, monocultivos agravam extremos climáticos pela influência que tem no solo, nas águas e na biodiversidade. Monocultivo é emergência climática. E, aqui no RS, esses foram facilitados pela alteração no Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS), que possibilita que as áreas de monocultivos passem dos atuais 1,2 milhões de hectares para 4 milhões de hectares, proposta que teve envolvimento da própria CMPC, que se beneficia da medida.
Na capital, Porto Alegre, o setor imobiliário desponta entre os mais beneficiados com a enchente. Regiões da cidade que já recebiam projetos imobiliários para alta renda e ficaram alagadas, deverão ter volumosos investimentos do poder público para melhoria na infraestrutura. Outras áreas sucateadas, mas com potencial de exploração, possivelmente serão alvo da especulação imobiliária. O prefeito Sebastião Melo busca avançar, neste ano, na privatização da parte mais rentável do DMAE, órgão municipal responsável pelo fornecimento de água potável e da gestão da rede de esgoto da Capital, cujo sucateamento e precarização esteve na raiz do agravamento do caos climático vivido pelos seus 2 milhões de habitantes.
Depois de meses inoperante, o único aeroporto da capital gaúcha, operado pela transnacional alemã Fraport, só retomou a reconstrução após resgate econômico pelo governo federal e, ainda, não retomou a plena capacidade. Em meio ao caos climático, governo do Estado e prefeitura convocaram empresas privadas norte-americanas, como a WayCarbon e Alvarez & Marsal, especializada no capitalismo de desastre, que também fez a gestão privada, privatista e racista do desastre climático em Nova Orleans (Estados Unidos) após o furacão Katrina.
Alheios às mudanças do clima provocadas pela exploração e pela forma de produção predatória da sociedade em que vivemos, os governos de Leite e Melo optam por falsas soluções que beneficiam grandes empresas e capitalistas e que, certamente, aprofundarão ainda mais a situação de emergência climática. Se antes a luta era contra o negacionismo, agora o enfrentamento é contra o oportunismo climático, que tenta expandir seus projetos de morte por meio de políticas neoliberais e soluções de mercado.
A resposta está na organização popular e no fortalecimento das soluções dos povos
O avanço do capital nos territórios de vida foi motor da enchente, tragédia tão anunciada por ambientalistas, movimentos sociais e populares que pautam a emergência climática, produto do capitalismo. Grande parte dos impactos poderiam ter sido evitados, mas alertas foram ignorados em nome do lucro da especulação imobiliária, do agronegócio e da mineração. Setores que, com seus empresários ou políticos, navegam no caos climático com projeto$ de morte, por vezes fantasiados em coletes salva-vidas anunciando falsas soluções de mercado.
Um ano após a enchente, para a maior parte da população a precariedade não é só lembrança. Medidas efetivas não foram tomadas pelo poder público, fato evidente em qualquer chuva, que faz alagamentos na maior parte das cidades, trazendo riscos, destruição, doenças, falta de luz, de acesso à água potável e ao transporte. O pavor se repete. Enquanto Porto Alegre recebeu, recentemente, o South Summit Brazil, maior evento de tecnologia e inovação da América Latina, em que se falou em resiliência nos termos dos negócios privados, o estado segue sem construção de sistemas de proteção contra cheias (8 projetos foram prometidos, nenhum está em execução). A proposta dos governos é de mais privatização e mais afastamento do povo nas políticas. Pessoas fundamentais impactadas nos campos, cidades, aldeias e retomadas indígenas, quilombos e periferias, que tornam possível o alimento, o cuidado, e coletividades dentro de seus territórios de vida, precisam participar dos espaços de decisão política.
Ocupação Maria da Conceição Tavares, do MTST, no centro da Capital. Crédito: Maí Yandara/ ATBR
Assim como a resposta imediata às enchentes quem deu foram os movimentos sociais organizados e os territórios de vida, fundados nos princípios da solidariedade, essa também é a nossa única saída a longo prazo. As retomadas indígenas permanecem vivas e de suas raízes vêm respostas sobre como regenerar o planeta, reexistir e semear a vida. A ocupação Maria da Conceição Tavares, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), em um prédio público desocupado há anos no centro da Capital, demonstra que a solução poderia não ter sido as casas temporárias propostas pelo governo, mas que sim, tem mais casa sem gente do que gente sem casa, e que o direito à moradia digna deve prevalecer à ganância do setor da especulação imobiliária. Cozinhas de emergência seguem operando até os dias de hoje, em uma rede de solidariedade entre o campo e a cidade que se ampliou e ganhou novos espaços.
Organizações populares atuaram com fôlego durante a maior catástrofe socioambiental do RS para garantir direitos e seguem se articulando para amparar a população e construir respostas reais às crises sistêmicas. Demandam que as devidas responsabilidades sejam assumidas pelo Estado e que as políticas sejam orientadas a partir das necessidades dos territórios de vida, com participação popular. Lembram, constantemente, que não há justiça climática sem justiça para os povos. E no seu horizonte, assim como no freio para a emergência climática, estão erguidas bandeiras pela soberania alimentar, fortalecimento da agroecologia, soberania fundiária, reforma urbana e rural popular, demarcação já de territórios indígenas e titulação quilombola. Contra o fatalismo pregado pelo sistema capitalista, que lucra com desastres, estão povos e comunidades em luta fazendo viva a memória de que é preciso transformar a realidade.