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A tortura, os porões, e a sala de jantar

Neste texto, pretendo questionar uma imagem específica, que eu mesma já usei em textos: a de “turma do porão”

“Uma imagem vale mais do que mil palavras” é uma expressão popular, usada para ressaltar o poder dos recursos visuais para a comunicação. De autoria do filósofo chinês Confúcio (Chiu Kung), tomava como base os ideogramas chineses, mas, na cultura popular, é usada para ilustrar a facilidade de explicar algo através de imagens, e não de palavras escritas ou faladas.

Para mim, a expressão ganha também o sentido de história, ou exemplos. A compreensão de teorias complexas ou grandes debates éticos é mais fácil quando transformada em parábolas bíblicas (aliás, valeu Papa Francisco!), ditados populares ou fábulas infantis. Empresas de propaganda sabem disso, as igrejas e seus pastores praticam isso, e os agitadores marxistas também sabem do poder das imagens na conquista dos corações como um caminho para as mentes.

Neste texto, pretendo questionar uma imagem específica, que eu mesma já usei em textos: a de “turma do porão”. A imagem faz referência aos militares que se envolveram diretamente com a prática de torturas durante a ditadura militar brasileira. A “turma do porão” seria também a “turma do serviço sujo”, tolerada, porém distinta, dos generais de quatro estrelas que se sentavam à mesa na sala de jantar. A imagem está em manchetes jornalísticas de veículos de esquerda, dá nome a blocos de carnaval direitistas, está na boca de personalidades que a condenam ou exaltam. Uma imagem simples, compreensível, forte. E equivocada.

Desmontar a propaganda academicamente é mais fácil que desconstruir a agitação, entranhada no inconsciente coletivo. Por isso, comecemos por 3 acontecimentos recentes. O primeiro deles é a identificação, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, dos corpos de Dênis Casemiro (pedreiro) e Grenaldo de Jesus da Silva (marinheiro). Ambos foram torturados, mortos e tiveram seus corpos ocultados na vala de Perus, junto a outros indigentes. O pedreiro, inclusive, já havia sido equivocadamente identificado. O trabalho de ocultação de provas das torturas e assassinatos foi feito de maneira cuidadosa, profissional. Não foi algo periférico, abandonado ao improviso de quem se prestasse ao “trabalho sujo” ou praticado por sádicos moralmente condenáveis.

“É preciso mudar o sistema policial/ Porque eles estão matando a pau/ Gente inocente” (música Agressão/Repressão, dos Ratos de Porão)

A segunda questão foi objeto de um conjunto de matérias do pesquisador Lucas Pedretti no Intercept. A que nos interessou particularmente, tratava das fichas funcionais de policiais na ativa durante a ditadura militar, que estavam abandonadas em sacos de lixo no DOPS. As fichas contêm elogios, promoções, reprimendas e remoções que os policiais receberam. Alguns nomes, de antemão, chamam a atenção, como a de Cecil Borer, conhecido torturador. Mas aqui, nos interessa mais perceber o trânsito entre a polícia política e a polícia comum, ou em outras palavras, havia corredores entre o “porão” e a “sala”, e isso não parecia causar maiores constrangimentos ou prejuízos à vida funcional. 

“Servir sua pátria/ te obrigam a obedecer/ te obrigam a matar/ te obrigam a sofrer!!! Não! não! não! não!!!!” (música Obrigado a Obedecer, dos Ratos de Porão)

As fichas funcionais mencionadas podem ser objeto de uma análise cruzada com as folhas de alterações militares que foram o substrato do terceiro acontecimento que destacamos nesse texto: o lançamento do livro de Mariana Joffily e Maud Chirio com o título “Quem foram os torturadores da ditadura militar. A brasileira, entrevistada pelo Opera Mundi, enfrenta a ideia de que o torturador é alguém que se excedeu, um outsider. A pesquisa relatada no livro deixa evidente que os torturadores faziam um trabalho absolutamente profissional, para o qual recebiam treinamento, por vezes no exterior; bônus materiais, como maior celeridade na ascensão profissional; e também bônus simbólicos, como medalhas e elogios públicos dos superiores hierárquicos. Não frequentavam, assim, nenhum porão, mas as salas de jantar, conformando um grupo duro e coeso. Se, publicamente, a tortura era negada, internamente, ela não foi punida, ou tolerada, mas valorizada e premiada. 

“Não, não, eu não sei/ sei o que é, e o que não é/ Porque o mundo anda em guerra, gerando violência/ Que vergonha” (música Que Vergonham dos Ratos de Porão)

Essas três pesquisas fornecem evidências para desmontar a propaganda montada para caracterizar a tortura como uma prática dos porões da ditadura. Elas se juntam a inúmeras outras com o mesmo tema, incorporadas e amplamente documentadas no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que inclui as cadeias de comando. Hoje tem-se conhecimento até mesmo de documentos da insuspeita CIA, contendo a autorização de Geisel para o assassinato de opositores. Existiu uma estrutura repressiva, montada com o conhecimento, anuência e estímulo do alto escalão militar, que conduziu a violência política de maneira sistemática, profissional e institucionalizada. 

Entretanto, mais que desmascarar as inverdades históricas, como desmontar a imagem que segue sobrevivendo às mais de mil palavras? Fica lançado o desafio aos bons quadros de agitação e propaganda que seguem espalhados por aí! Sem dúvidas, a tortura se sentou à sala de jantar, pediu o menu dos vinhos, e iniciou a leitura dos rótulos à direita, escolhendo um daqueles mais caros. No porão, só ficaram os ratos do punk paulista, contestando os holofotes. 

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