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Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.ver mais

Será que ainda dá tempo de pedir para Santo Antônio um Homem com H?

O quartel foi uma fonte de autoafirmação para o jovem Matogrosso diante da autoridade paterna

No interior do país, ou no Brasil profundo, como diz o Exército, um santo específico entre os três homenageados nas festas juninas faz muito sucesso entre solteiras e solteiros: é Santo Antônio, famoso como casamenteiro. Na minha terra, para ser honesta, se diz que é melhor rezar pra São José, que ele traz os “moço bão, sério”. Como já perdi as duas datas, melhor apelar pro santo que aniversariou faz pouco tempo.

Como “sou mais macho que muito homem”, já escutei muitas vezes que “tá te faltando homem com H”. Mescla de machismo, homofobia e saudosismo de um passado idealizado, a observação costuma vir acompanhada de outras, como “foi no quartel que meu filho virou homem”. Associa-se à passagem pelo mundo militar, notadamente durante o recrutamento obrigatório aos 18 anos, o momento em que o jovem adquire características atribuídas ao gênero masculino, como vigor físico, seriedade, compromisso, camaradagem, respeito aos horários, rusticidade (seja lá o que for isso) etc. Não deixa de ser curioso notar que, junto à hierarquia e disciplina, características atribuídas ao gênero feminino também são incutidas, como asseio, cuidado com o ambiente em que vive e com a própria apresentação. 

Mas não é que eu pedi um Homem com H pra Santo Antônio, e ganhei? Quem ainda não assistiu ao filme Homem com H, sobre a vida do maravilhoso cantor brasileiro Ney Matogrosso, corra para ver! Muito se comentará sobre as mudanças artísticas ao longo da carreira do Ney, ou sobre a sua badalada vida sexual. Neste texto, comentaremos um aspecto pouco conhecido da vida do artista, a sua passagem pelos quartéis.

Ney cresce como parte da família militar em tempos fervilhantes. É filho de Antônio Mattogrosso Pereira, um pracinha do Exército, apelido que ganharam os brasileiros que enfrentaram o fascismo no teatro italiano durante a 2ª Guerra Mundial. Antônio alistou-se em 1944, e em abril de 1945 foi, como 2º Sargento, exercer a função de escrevente no setor administrativo das tropas que lutaram na Itália. Ao regressar ao Brasil, permaneceu na Força Aérea Brasileira, então recém-criada. Foi promovido a suboficial em 1948, e foi para a reserva como 2º Tenente, em 1963. Durante a carreira, recebeu 3 condecorações: a Medalha da Campanha da Itália, a Medalha da Campanha do Atlântico Sul, e a Presidential Unit Citation (EUA).

No filme, não é feita nenhuma menção às constantes mudanças de estado que fizeram parte da infância de Ney Matogrosso, acompanhando as transferências do pai, algo pouco comum atualmente no caso de suboficiais. A casa da infância do cantor também aparenta ter sido a mesma. Entretanto, segundo entrevistas, a família teria acompanhado o pai em transferências e morado em Vilas Militares, antes de se estabelecer de maneira definitiva no Mato Grosso. 

Existe uma área dentro dos estudos de defesa que se dedica ao estudo da família militar. Nela, predominam as análises sobre as esposas de militares, seu peso na ascensão da carreira do marido, as dificuldades profissionais inerentes às constantes mudanças geográficas acompanhando os parceiros, e a distância das famílias em que se nasce, com a consequente adoção de novas famílias nos quartéis. Entretanto, mesmo em trabalhos de antropólogos oriundos da família militar, como é o caso de Celso Castro, a voz dos filhos e filhas de militares é bastante ausente.

O filme enfatiza o rigor com que o pai tratou Ney durante a maior parte da vida, e a posterior reconciliação. O cantor relata ter apanhado do pai muitas vezes, com quem estabeleceu uma relação de medo, e não de respeito, durante boa parte da vida. Entretanto, o quartel foi também uma fonte de autoafirmação para o jovem Matogrosso diante da autoridade paterna, tendo ele mesmo servido à Aeronáutica, no Rio de Janeiro, em 1959.

No filme, o cantor é apresentado como um bom militar, sem dificuldades de adaptação, inclusive em função da hierarquia e disciplina, que já eram regra no ambiente familiar. Pelo contrário, se em casa ele só contava com a proteção da mãe diante de um autoritário, na caserna, ele encontrava solidariedade junto aos recrutas que passavam pelos mesmos percalços que ele diante de comandantes mais ou menos autoritários que eram, eles próprios, também sujeitos à autoridade de outrem.

Óbvio que a sexualidade de Ney era um motivo de angústia. E é incrível que ele tenha decidido romper com a violência dentro de casa em função da orientação sexual e opção profissional exatamente buscando um quartel. O filme, assim como os relatos do cantor, retrata um ambiente surpreendentemente oxigenado, incluindo um romance clandestino com um colega. Jovens com os hormônios em ebulição, juntos, fazem experimentações individuais e coletivas. No relato de Ney, o quartel não foi um espaço de repressão, mas de libertação (inclusive sexual, embora sob vigilância). 

Haja dialética para compreender tudo isso. Possivelmente, o tema ainda não era considerado uma questão a ser objeto de tipificação. Em 1969, o Código Penal Militar tratava do ‘homossexualismo’ e da ‘pederastia’, prevendo pena para o militar “que praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. A norma foi modificada em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, que retirou os termos pederastia e homossexual, considerados discriminatórios. 

Atualmente, não existem normas que proíbam o alistamento ou determinem a expulsão de gays, lésbicas ou transexuais das Forças Armadas brasileiras. Entretanto, em função da cultura dos quartéis e da alta autonomia dos comandantes de unidades, abundam relatos de constrangimentos, pressões para que abandonem a carreira, ou atribuição compulsória de atividades que dificultam a manutenção de relacionamentos a depender da identidade de gênero ou orientação sexual, sem falar em ridicularizações e piadas que não são crimes, mas nem por isso são menos violentos. Algumas dessas questões vêm sendo judicializadas, como a luta pelo acesso a direitos previdenciários militares por casais formados por pessoas do mesmo sexo.

Nesse sentido, a reivindicação atual é a mesma que Ney logrou obter segundo o filme: a orientação sexual não compromete a capacidade individual no desempenho das atividades militares, não impacta no poder combatente das Forças Armadas, e não deveria alterar em nada a credibilidade institucional junto à população.

Por fim, o filme releva, e os relatos do nosso homem com H confirmam, que a principal característica aprendida por ele durante o período que serviu foi o manejo da própria imagem. Tomar banho junto, dormir junto, fazer exercícios junto, e um conjunto de outras atividades, sempre feitas de maneira controlada e em coletivo, desenvolveram no artista uma capacidade de renunciar à própria privacidade que, segundo o cantor, foi muito útil posteriormente nos palcos, especialmente durante os Secos e Molhados, quando ele ficou quase nu repetidas vezes. Desenvolveram também a necessidade de impor, se necessário à força, limites aos outros, estabelecendo a fronteira entre o eu e o camarada.

Sabe uma característica fundamental do Homem com H? Responsabilidade. Ney Matogrosso mostrou enorme responsabilidade afetiva com seu companheiro e amigos até o fim da vida, o mais conhecido deles, o também cantor Cazuza. Se pensarmos na emergência do HIV nos anos 1990, o H de Ney não deixa de ter um componente de Heroísmo, tão presente no cotidiano da vida de tanta gente, mas pouco glamourizado no cinema. O herói nas grandes telas é, em geral, um vitorioso em ações militares. Contribui para o status das Forças Armadas junto à população a associação (na maioria das vezes apenas mística, e não histórica), entre os atuais militares e os heróis. 

Talvez homens com H estejam mesmo em falta. Antes fossem ‘heróis morrendo de overdose’. Faltam homens com H que prefiram amar homens ou mulheres, que se recusem a matar. Meus inimigos, e os do pai do Ney Matogrosso, os fascistas, estão no poder em diferentes lugares ao redor do mundo. Quem sabe o gene X nos ajude a encontrar ideologias melhores pra viver? Garotos e garotas mudam o mundo, não tem muro que segura. 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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