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Jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração E...ver mais

Quem vai pisar na borboleta?

Não são partidos que vão se confrontar. São ideias completamente opostas.

Ray Bradbury é um daqueles tantos sujeitos cujo talento ajudou a constituir e compartilhar o imaginário dos Estados Unidos com cada habitante da Terra. Um dos grandes nomes da ficção-científica do século 20, Bradbury contava, entre seus leitores, com o gênio Jorge Luis Borges, que prefaciou a edição argentina do seu livro Crônicas Marcianas. Bradbury também era lido por um poeta superior, Mário Quintana. “Ray Bradbury é nossa segunda vovozinha velha/que vai desfiando histórias à beira do abismo/e nos enche de susto, esperança e amor”, escreveu o gaúcho.

Mas o que teria Bradbury a ver com o Brasil de 2018? Bradbury morreu em 2012. Como todo novelista equipado para expedições ao futuro, 66 anos atrás escreveu algo que flerta com a realidade brasileira pré-eleições presidenciais. 

É um conto clássico que embarca num tema recorrente da literatura de antecipação: a viagem no tempo. Contudo, mesmo quando descreve um mundo de naves e jornadas espaciais, Bradbury está sempre interessado na fragilidade da condição humana. E no risco das sociedades totalitárias.         

É o que acontece em Um Som de Trovão, de 1952, presente em várias antologias de ficção científica. A história pode ser resumida da seguinte maneira: Eckels, um sujeito fraco, compra um bilhete para o passado. Em algum momento do futuro esse tipo de viagem é explorado por uma empresa, a Time Safari Inc., que promove caçadas de dinossauros.

Só podem ser alvejados animais que tiveram a vida rastreada pela empresa que sabe o momento certo em que o dinossauro vai morrer. Naquele exato momento, o tiro é autorizado, o grande lagarto tomba e o caçador feliz é fotografado ao lado da presa infeliz e morta. 

Não pode haver nenhuma interferência no passado sob pena de, por pequena que seja, provocar alterações profundas no presente. Bradbury explica melhor: se alguém matar um camundongo, todos os descendentes daquele camundongo nos próximos sessenta milhões de anos deixarão de existir.

O que terá consequências para todos os predadores dos filhos, netos, bisnetos, trinetos e todas as gerações que adviriam daquele camundongo. E para o predador de todos os predadores: o homem. 

Assim, ninguém pode pisar fora da trilha antigravitacional suspensa a 30 centímetros do solo.  O guia do safari avisa: “Lembrem-se que Alexandre, César, Napoleão, Hitler nenhum deles existe.(…) Pise num camundongo e você estará deixando sua marca, como um Grand Canyon, por toda a Eternidade”.

Porém, apesar da advertência, quando surge o Tiranossaurus Rex, o covarde Eckels entra em pânico e põe os pés fora da trilha. Um erro fatal. 

Antes, no momento em que os viajantes deixaram o presente rumo ao passado, um candidato democrático, Keith, acabara de vencer a eleição presidencial. Derrotara Deutscher, uma ameaça fascista. No começo do conto, um dos personagens explicara o que Deutscher significaria:

“Se Deutscher tivesse conseguido se eleger teríamos o pior tipo de ditadura. Tem sempre um homem anti-qualquer-coisa para a gente, um militarista, anticristo, anti-humano”. 

No final, quando o grupo retorna ao local da partida, no tempo presente, sentem que algo mudou e muito. Estranham logo o anúncio da Time Safari com sua grafia agora totalmente errada (“Vossê iskole o animall” etc). É quando Eckels descobre, no meio do barro das botas, uma borboleta esmagada. Ao perguntar ao funcionário da empresa quem ganhou as eleições é só para confirmar uma suspeita. “Deustcher, é claro (…) Temos um homem de ferro agora, um homem de coragem, por Deus!” é a resposta.

No Brasil destes dias, uma encruzilhada similar àquela descrita por Bradbury se aproxima. Não são partidos que vão se confrontar. São ideias completamente opostas. Uma acena com a democracia, outra com o seu ocaso. Talvez o país nunca tenha tido um enfrentamento tão dramaticamente demarcado entre Luz e Escuridão.

Do lado da barbárie, muitos, entre os piores, já se assanham. Sombras esquecidas se erguem das tumbas, boçais perdem a modéstia, matilhas farejam sangue. Muitos vêem o passado remoto como futuro. Para quem não aceita os idos de 1964 como horizonte é preciso clareza, perseverança e muita atenção. Reunir mais forças, mais companheiros e companheiras e mais votos. Sempre sabendo que, do outro lado, a proposta é mesmo a de pisar na borboleta

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