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Minha decepção com a Globo

Ao percorrer suas seis décadas, ela omitiu muitos episódios cruciais, abdicando do seu protagonismo

Foi uma overdose. Os 60 anos da TV Globo inundaram como um tsunami midiático a grade da maior emissora do Brasil. Todos os dias, todos os horários, todos os programas. Manhã, tarde e noite. Foi um tremendo esforço da produção para passar em revista as façanhas da Globo perante os principais eventos do país e do mundo. Mas, apesar do tour de force, fiquei decepcionado.

Ao percorrer suas seis décadas, ela omitiu muitos episódios cruciais, abdicando do seu protagonismo. Queira-se ou não, a TV Globo é figura de primeiro plano da história do Brasil, sobretudo a política, dos últimos 60 anos. Pode-se dizer que, sem a emissora de Roberto Marinho, o país seria outro.

Sem querer ser desagradável, mas já sendo, faltou contar da história as melhores partes. Por exemplo:

1) Faltou contar sobre a urdidura do acordo Time-Life que possibilitou a existência da TV Globo. O negócio – ilegal, segundo a Constituição – foi denunciado em 1965 pelo governador Carlos Lacerda, parceiro do golpe de 1964 e, portanto, insuspeito. Ele apontou uma injeção de US$ 6 milhões do grupo norte-americano na Globo, sendo que os gringos ficariam com 30% dos lucros. Na letra fria da lei, estrangeiros não podiam ser donos de meios de comunicação. Mas a ditadura, que se dizia nacionalista, passou a mão por cima. Vinte anos após, a solitária empreitada de 1965 transformara-se em uma potência com 150 emissoras afiliadas;

2) Faltou contar por qual motivo o mais sanguinário dos ditadores do período, Garrastazu Médici, dizia sentir-se relaxado e feliz ao contemplar a placidez do Jornal Nacional. “O mundo está um caos, o Brasil está em paz”, nas suas palavras em 1972, auge das matanças e desaparecimentos. Terá a ver com a famosa frase de Roberto Marinho. “O importante não é o que o Globo publica, mas o que não publica?”;

3) Faltou contar sob qual argumento os veículos da empresa nomearam como “terroristas” os grupos que peitavam a ditadura através das suas (poucas) armas. Eram guerrilheiros e sua tática nunca foi a do terror que mata pessoas indiscriminadamente;

4) Faltou contar como as Organizações Globo se uniram aos militares para impedir o primeiro Prêmio Nobel do Brasil. Aconteceu em 1970 quando torpedearam a candidatura de Dom Hélder Câmara ao Nobel da Paz. Principal voz contra a ditadura no Brasil, o arcebispo de Olinda e Recife era franco favorito até ser vítima de uma campanha escrota de mídia no Brasil e na Europa orquestrada pelo empresário norueguês Henning Boilesen, do grupo Ultra, que possuia laços de ternura com as masmorras da Operação Bandeirante, a Oban, da qual era um dos financiadores;

5) Faltou contar sobre a apreciação do publisher Roberto Marinho no 10º. Aniversário do regime militar, aquele que O Globo exaltou, na primeira página, com o editorial “Ressurge a democracia”. Na passagem dos 10 anos, Marinho definiria o golpe como uma “medicina democrática”;

6) Faltou contar sobre o editorial “O Julgamento da Revolução”, publicado no 20º aniversário do golpe, no qual o dono da empresa explica, paradoxalmente, que participou de 1964 – ou seja, da implantação da ditadura – para preservar as instituições democráticas;
7) Faltou contar como e porque a TV Globo ignorou o movimento das Diretas Já em 1984, apresentando a multidão nas ruas de São Paulo como um amontoado de gente festejando o aniversário da cidade;

8) Faltou contar como a Globo nomeou três ministros no governo Sarney, quando a família Marinho ganhou mais quatro concessões de TV;
9) Faltou contar do escândalo Proconsult, em 1982, quando através de uma maracutaia na apuração dos votos, tentou afanar a eleição de Leonel Brizola ao governo do Rio de Janeiro;

10) Faltou contar da edição do debate Lula x Collor em 1989, na primeira eleição após o fim da ditadura, quando o Jornal Nacional apresentou uma compilação dos melhores momentos de Collor – candidato da Globo – e dos piores de Lula. Uma farsa comandada desde o topo da cadeia alimentar do Jardim Botânico, algo que os próprios autores da edição mais tarde admitiriam;

11) Faltou contar o papel da Globo como assessoria de imprensa da operação Lava-Jato, que realizou prisões abusivas, forçou confissões, condenou sem provas e destruiu as maiores empresas nacionais e milhões de empregos, tudo através de processos viciados em que o juiz que julgava integrava também a bancada de acusadores. Escrachou como um todo a política e os políticos, ajudando a criar o embuste do “antipolítico”;

12) Faltou contar o protagonismo da TV Globo no impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma Rousseff e na prisão de Lula, o que abriu a caixa de Pandora, aplainando o terreno para a ascensão de Jair Bolsonaro. Que daria um cavalo-de-pau na direção do país, colocando-o no rumo do século 19, o que resultou em mais pobreza e desemprego, na miniaturização do Brasil no cenário internacional, em 730 mil mortos na pandemia e na tentativa de golpe de estado.

Mas sejamos pacientes. Mais uma década e estarão aí os 70 anos da Globo. Talvez lá tais fatos sejam trazidos. Esperemos sentados.

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