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Bioética em Pauta

Eutanásia: no fim de vida, quatro patas bom, duas patas ruim

Pacientes veterinários têm direito ao alívio do sofrimento, enquanto pacientes clínicos não o têm. Até quando?

Imaginemos, a bem de uma reflexão, o seguinte cenário: após intensivas intervenções médicas, o paciente para de responder. Por mais que se mantenha o tratamento corrente, é certo que sua saúde não será recuperada, persistindo sequelas irreversíveis ou mesmo a inviabilidade da vida sem a presença dos aparelhos. O paciente não pode tomar suas decisões por conta própria, mas a situação é relatada pelo profissional de saúde aos familiares, que devem tomar uma decisão.

As escolhas são muito diferentes a depender da espécie do paciente. Se se trata de um humano, o máximo que a família pode escolher é a retirada do tratamento e remediar a dor e o desconforto, até que o paciente morra por conta própria. Se o paciente for um cão ou um gato, a família pode optar pelo fim imediato do sofrimento, pela eutanásia – que embora não seja indolor, é mais rápida e menos degradante que definhar por conta própria.

Ocorre, nas situações de fim de vida, uma forma de especismo às avessas. Usualmente, o especismo é utilizado para negar direitos aos seres sencientes, como os animais, sob o preconceito de que uma específica forma de vida, os seres Homo sapiens, são melhores que todos os demais.

Ter a opção de abreviar o sofrimento

Só que, no fim de vida, os animais têm direito à antecipação da morte, com o mínimo de dor e de sofrimento; e os seres humanos que habitam o Brasil não têm a mesma escolha. Precisam definhar, ligados a aparelhos ou sem eles, até que sua vida se expire, sem aviso ou preparação.

Durante a ditadura do Estado Novo, o advogado Sobral Pinto invocou a lei de proteção aos animais para defender seu cliente, que fora torturado barbaramente pelos agentes do regime. Ainda hoje seria necessário invocar a equiparação do animal humano aos demais animais, para que tenha acesso à morte assistida pela medicina?

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Não se pode dizer que o tratamento dos pacientes em fim de vida é perfeito, mesmo nos lugares onde a morte assistida por médicos é legalizada, como no Canadá, nos Países Baixos ou na Bélgica. Mesmo naqueles países, existem situações-limite em que a vontade do paciente pode ser afetada pela falta de condições econômicas ou pela precariedade do tratamento, fazendo com que a pessoa opte pela morte assistida como o menor dos males. Ainda assim, ter a opção de abreviar o sofrimento é melhor do que não a ter.

Na “Revolução dos Bichos”, George Orwell apresentou o slogan que conduzia a ideologia dos porcos: “quatro patas bom, duas patas ruim”. No Brasil, quando o tema é o fim de vida, a mesma máxima vale. Pacientes veterinários têm direito ao alívio do sofrimento, enquanto pacientes clínicos não o têm. Até quando?

Marcelo Sarsur é advogado criminalista, doutor em direito pela UFMG e 2º vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética em Minas Gerais (SBB MG)

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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato

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