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O Ponto é editado por Lauro Allan Almeida e Miguel Enrique Stédile, do Front - Instituto de Estudos Contemporâneos, e é publicado todas as sextas-feiras.

Ninguém solta a mão de ninguém?

Olá, Lula foi eleito por uma frente ampla pela democracia que envolvia de catadores à banqueiros bilionários. Mas na hora de enfrentar os dilemas econômicos, ela permanecerá coesa?

.Geringonça. Em contagem regressiva para os primeiros cem dias, uma parte importante do programa que formou a frente ampla que elegeu Lula está em curso: desbolsonarizar o Estado e a sociedade, tarefa acelerada inclusive pela intentona de 8 de janeiro. Porém, o governo não poderá se sustentar por quatros anos apenas reconstruindo as ruínas do Estado brasileiro. Especialmente quando a economia apresenta a conjunção para uma “tempestade perfeita” de crise: impacto da guerra da Ucrânia no comércio mundial, queda da economia nos Estados Unidos, tendência de queda nos preços das commodities, crise do crédito pela inadimplência dos consumidores e persistência de juros altos pelo Banco Central. A estimativa mais otimista do mercado financeiro para o PIB é de um crescimento de 1,5% neste ano. Mas, nos bastidores, o mercado não imagina sequer 1% e ninguém acredita que o Banco Central vá baixar os juros dos atuais 13,75%. Por outro lado, Lula já deixou tanto evidente que tem pressa para implementar os programas sociais, quanto que está disposto a comprar briga com a Faria Lima. Mas de nada adianta Lula ter o apoio de um prêmio Nobel de economia se, dentro de casa, ele enfrenta a batalha sozinho, contando apenas com seu capital político e eleitoral. Na construção de uma frente ampla pela economia, o governo sabe que precisa, mas não pode contar com o Congresso. Nem confiar na própria base. Vide o PSD e o União Brasil, que ganharam dois ministérios que só criam problemas e não garantem fidelidade nas votações. Além disso, passada a tempestade lavajatista bolsonarista e as reformas eleitorais, os próprios partidos estão se reposicionando, ideológica e institucionalmente, seja atraídos pelo pólo governista, seja tentando ocupar o vazio deixado à direita por Bolsonaro e pelo PSDB. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, no caso da fusão do União Brasil com o Progressistas.

.Ando devagar, mas tenho pressa. O protagonismo de Lula é importante quando não se tem um programa que garanta a unidade numa frente ampla que vai do PSOL ao União Brasil. O episódio sobre os preços dos combustíveis é exemplar. Favorável à retomada dos tributos, Haddad foi alvejado em público pelos colegas Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, e Zeca Dirceu, líder da bancada. Os dirigentes petistas temiam que a volta dos tributos – zerados na marra por Bolsonaro para alavancar a própria eleição – resultasse em queda de popularidade do presidente. A decisão de Lula pode parecer salomônica, retomando parte da reoneração, mas a verdade é que ele foi convencido pelo argumento de Haddad: priorizar o transporte coletivo, mantendo o diesel isento; punir o ambientalmente injusto, a gasolina; e incentivar o ecologicamente correto, o etanol. Além disso, ao aumentar o imposto sobre exportação, o ministro garantiu sua meta de arrecadação sem passar todo o custo para o consumidor. De quebra, o mercado rebaixou a meta da inflação. Vitorioso, Haddad aproveitou para cutucar o Banco Central e cobrar a queda na taxa de juros. O plano do ministro da Fazenda é público: pôr a casa em ordem na política fiscal e monetária, simplificar o sistema tributário, fazer a economia crescer com ampliação do comércio internacional e financiar a reindustrialização com os fundos do hemisfério norte para a preservação ambiental. O seu problema é o tempo. Lula gostaria de ver as coisas mais rápidas e menos graduais. Os próximos testes para Lula, Haddad e o governo já estão na ordem do dia: a nomeação dos novos diretores do Banco Central, apresentação da nova regra fiscal e aprovação da reforma tributária.

.Quebrando os ovos. O mercado já começou a ter pesadelos com a possibilidade de mudanças mais profundas na política da Petrobras. O alvoroço desta semana é na verdade um teste de forças para definir a composição da nova diretoria da petroleira, já que o atual presidente, Jean Paul Prates, indicado por Lula em dezembro do ano passado, só assumirá o comando efetivamente com a posse do novo conselho prevista para abril. Somente aí se saberá se o governo terá força para implementar alguma mudança de rumos na Petrobras. Inicialmente, sob protestos da FUP, quem tinha levado a melhor era o centrão, emplacando seus aliados no conselho, com a ajuda do Ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira (PSD). Porém, Lula recuou, adiou a data de posse da diretoria e anunciou novos nomes, mais próximos ao campo petista. Três temas já estão na pauta do governo e poderão avançar a depender do resultado da disputa. O primeiro é a absurda distribuição de dividendos aos acionistas da petroleira, mais de R$ 35,8 bilhões em 2022, assunto tabu que sempre que é levantado causa dores de barriga no mercado. O segundo, é a política de paridade internacional dos preços (PPI) que já entrou na agenda da base aliada esta semana. A posição de Lula e do PT sobre o assunto não é segredo para ninguém – desvincular o preço interno do externo – e o assunto esteve em pauta durante a campanha eleitoral. O terceiro tema é uma revisão do plano estratégico da Petrobras aprovado no apagar das luzes do governo Bolsonaro. Uma mudança dessa magnitude permitiria recuperar subsidiárias privatizadas, garantir a autonomia do Brasil no refino de combustíveis e na produção de fertilizantes, assim como operar a recompra das ações que hoje estão nas mãos de especuladores. A decisão de suspender por noventa dias a venda de ativos da Petrobras é parte da queda de braços de Lula com o mercado, mas mostra que mexer no plano estratégico da petroleira não está fora das pretensões do governo. Por fim, se tudo der errado, Haddad promete que é possível criar um colchão para amortecer a inflação dos combustíveis sem mexer no vespeiro.

.Legalistas, pero no mucho. Não só de desafios econômicos vive o governo. Mesmo que o terceiro turno do bolsonarismo tenha fracassado depois do fatídico 8 de janeiro, há ainda muito trabalho pela frente para superar o passado. No Congresso, a base bolsonarista dá sequência a seus planos de instalar uma CPI dos atos golpistas sob seu controle. A jogada é tentar fazer o rabo balançar o cachorro, responsabilizando o próprio governo pelo atentado às instituições ocorridos em Brasília. O risco de uma CPI num Congresso como este é a paralisação do processo legislativo e uma crise de governabilidade. Mas o principal nó continua sendo a questão militar. Parte da estratégia de Lula tem sido desmontar o “Estado profundo” comandado pelo general Heleno, retirando a Abin do controle do GSI para subordiná-la à Casa Civil. Desde o início o governo vem agindo também no sentido de pinçar um setor considerado legalista para os postos de comando das Forças Armadas a fim de frear o espírito golpista geral. Foi o que ocorreu com a substituição do general Júlio Cesar de Arruda pelo general Tomás Paiva no comando do Exército. Alguns frutos simbólicos desta decisão estão sendo colhidos, como a abstenção do Exército de comemorar o golpe militar este ano. O problema é que um áudio vazado recentemente mostra que Paiva pode não ser tão legalista assim. E, coincidentemente, o vazamento ocorreu bem no momento em que Alexandre de Moraes decidia que os militares envolvidos nos atentados de 8 de janeiro seriam julgados pelo STF e não pela Justiça Militar. É possível que as Forças Armadas tenham ficado furiosas e simplesmente sido obrigadas a engolir a decisão e fingir concordância. Porém, também é verdade que um julgamento pela justiça civil é mais conveniente, já que permite aos militares se absterem de punir seus companheiros de farda. Mais um ponto para Alexandre de Moraes.

Lula foi eleito por uma frente ampla pela democracia que envolvia de catadores à banqueiros

 

.Ponto Final: nossas recomendações.

.Estamos vendo uma reconfiguração da ordem mundial. Na Jacobin, o geógrafo marxista David Harvey explica como funciona o novo sistema de exclusão financeira e as possibilidades de superá-lo.

.Onde os bilionários buscam consolo. Como os ricos tentam preencher uma vida vazia em clínicas com uma montanha de profissionais do cuidado ao seu dispor. No Outras Palavras.

.Na Colômbia: uma nova gramática do poder. O governo Gustavo Petro conquista o cessar-fogo com grupos guerrilheiros e inicia mudanças estruturais na Colômbia. No Outras Palavras.

.O que Aurora e Salton agora têm em comum com empresas como Zara e Odebrecht. No UOL, Leonardo Sakamoto elenca outras cadeias produtivas que se apoiam no trabalho escravo.

.Uma investigação à espera de um milagre. Conheça os caminhos e as possibilidades de avanço da investigação sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Silva.

.Com afastamento do juiz Bretas, o que sobrou da Lava Jato é o bolsonarismo. No UOL, José Roberto Toledo lembra como a Operação gestou o bolsonarismo e só conta com ele agora.

.O primeiro ato de Beatriz Matos, viúva de Bruno Pereira. A antropóloga volta ao Vale do Javari depois do assassinato de seu marido para combater o crime organizado na região. Veja no Construir Resistência.

.Uma cidade doente. O IHU recupera o histórico de violência de Sinop, no Mato Grosso, cidade onde um bolsonarista chacinou sete pessoas durante uma partida de sinuca.

.'Devo tudo ao cinema', diz projecionista que aprendeu a ler para exibir filme no Anexo Augusta. A Folha de S. Paulo apresenta a trajetória de José Alberto Martins de Andrade, que de retirante e analfabeto se tornou projetista e especialista em cinema.


Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

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