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A coluna do Movimento Brasil Popular é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Escrita por militantes do movimento de todo o Brasil, ela aborda temas relacionados à política brasileira, luta id...ver mais

Orgulho LGBTQIA+ em tempos de barbárie: celebrar também é resistir!

Orgulho que não é vaidade, é antídoto, uma forma de afirmar a vida quando tudo ao redor parece morte

Por Daiane Araújo*

Junho é tempo de fogueira acesa e bandeira colorida, tempo de São João, de celebrar o que se planta e o que se colhe, tempo de festa, de trabalho, de identidade e de resistência do povo. É nesse clima que também celebramos o Orgulho LGBTQIA+, porque assim como o São João, o orgulho de ser quem somos é uma celebração coletiva da vida, da cultura e da resistência de nossa identidade.

Se o São João é a festa da colheita, o mês do orgulho é a festa de tudo que cultivamos sendo quem somos, mesmo quando nos disseram que não deveríamos existir.

Em junho é celebrado o mês do Orgulho LGBTQIA+ em diversos países em memória da Revolta de Stonewall, em 1969, quando travestis, lésbicas e gays enfrentaram a repressão policial em Nova York. Esse foi um levante que acendeu a chama de uma nova etapa de luta por visibilidade e dignidade. O dia 28 de junho ficou marcado como Dia Internacional do Orgulho e, desde então, junho tornou-se um tempo de afirmar vidas, relembrar lutas e sonhar com liberdade.

Mas se nos Estados Unidos a fagulha se acendeu no bar Stonewall, no Brasil o orgulho também tem sua história. Já nos anos 60 e 70, enquanto o país enfrentava a ditadura militar, pessoas LGBTs se organizavam nos grandes centros urbanos, buscando sobreviver, amar e construir comunidade, muitas vezes à margem, em espaços de encontro clandestinos como parques, cinemas, banheiros públicos e clubes de fã das divas do rádio.

Em 1978, nasce em São Paulo o Grupo Somos, a primeira organização política assumidamente homossexual do Brasil. O “Somos” surge em meio à repressão da ditadura e marca um ponto de virada na luta por direitos, visibilidade e reconhecimento político da comunidade. Mais do que um grupo, foi um marco na politização da identidade LGBTQIA+, transformando o que antes era visto como desvio ou doença em lugar de dignidade e disputa.

Junto ao grupo, surgiram também veículos de comunicação alternativos como o Lampião da Esquina e o Xana com Xana, que desafiavam a censura do regime militar e atuavam em três frentes fundamentais: 1) Informar, ao denunciar violências, questionar normas de gênero e abrir debates até então invisíveis na mídia tradicional; 2) Acolher, ao criar laços de pertencimento e afirmação num tempo de isolamento e vergonha imposta; e 3) Resistir, ao transformar palavras em trincheiras contra o moralismo e o autoritarismo da época.

Esses jornais, muito mais do que meios de comunicação, foram faróis para quem buscava se reconhecer em um mundo que negava até o direito de existir. Embora a homossexualidade nunca tenha sido oficialmente criminalizada no Brasil, sempre foi tratada com escárnio, violência e marginalização. O Grupo Somos e a mídia alternativa LGBTQIA+ enfrentaram esse contexto de frente, ousando dizer que existimos, amamos, pensamos, e vamos lutar.

Ainda nos anos 80, a chegada da epidemia de HIV/AIDS trouxe uma nova onda de estigmatização. A tentativa de associar pessoas LGBTs à doença, considerando-os impuros e uma ameaça à família tradicional foi respondida com criatividade e afirmação. Foi nesse contexto que o orgulho se consolidou como tática política, uma forma de dizer que não há nada de errado com a nossa existência, que o erro está num sistema que tenta nos adoecer. 

A escolha de celebrar a diversidade, o orgulho pela identidade sexual, de vestir a roupa que quiser, beijar em praça pública, criar novas linguagens e construir comunidade, é profundamente política. E se torna ainda mais urgente diante da crise civilizatória que vivemos, marcada pela ascensão da extrema direita, que mistura fundamentalismo religioso, misoginia, racismo, lgbtfobia, xenofobia e um neoliberalismo feroz que nos quer isolados, competitivos e silenciosos. Mesmo com um governo democrático, o bolsonarismo segue vivo nos discursos, nas igrejas, nas políticas públicas e nas instituições.

É por isso que, em tempos tão duros, o orgulho reaparece como ferramenta de luta e esperança, para dizer que nosso corpo não são mercadoria nem vergonha, que um mundo feito com afeto e solidariedade, de prazer sem culpa, de políticas públicas que não nos descartem é possível. Orgulho que não é vaidade, é antídoto, uma forma de afirmar a vida quando tudo ao redor parece morte, é o gesto coletivo de quem se recusa a se apagar.

É por isso também que o orgulho  LGBTQIA+ precisa estar lado a lado das grandes lutas do povo brasileiro. Em 2025, estamos construindo um plebiscito popular para taxar os super-ricos e reduzir a jornada de trabalho, com o fim da escala 6×1. Essa pauta não é apenas econômica, é estruturante e necessária no enfrentamento à desigualdade social, ao racismo e ao patriarcado.

Nos shoppings, nos call centers, nas cozinhas e estoques dos fast foods, quem sustenta a máquina do lucro são corpos dissidentes, racializados e periféricos. São LGBTs exaustos, precarizados, que vivem sob vigilância e medo e ainda assim seguem resistindo. Lutar pela taxação dos super-ricos é lutar para que a riqueza mude de lado e lutar pela redução da jornada de trabalho é também lutar por tempo para viver, amar, criar e descansar.

O orgulho que celebramos em junho deve ser força organizada de forma permanente, porque resistir e lutar por vida digna é urgente e porque transformar radicalmente a sociedade é ainda mais necessário.

Orgulho que não é vaidade, é antídoto, uma forma de afirmar a vida quando tudo ao redor parece morte

*Daiane Araújo é militante do Movimento Brasil Popular e vice-presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE).

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