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A coluna do Movimento Brasil Popular é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Escrita por militantes do movimento de todo o Brasil, ela aborda temas relacionados à política brasileira, luta id...ver mais

Julho das Pretas: memória, lutas e resistência

Neste mês de julho somos convidadas a trazer a memória as mulheres negras escravizadas que estiveram na base da formação do povo brasileiro

Elisa Maria Lucena e Lizian Maria Silva Martins*

Chama Tereza aí, chama Tereza aí
Lá vem ela, lá vem ela, lá vem ela
Tereza de Benguela

A quem deu visibilidade ao papel da mulher negra na história
Filhos do congo vem narrar esta vitória

Lá vem ela, lá vem ela, lá vem ela
Tereza de Benguela

Filhos do Congo
Faz a festa e vem para as ruas
Em sua busca não há trégua
Numa memória quilombola que conserva
A luta em Tereza de Benguela

Benguela, Benguela
Rainha negra, mulher que não se entrega

Chama Tereza aí, chama Tereza aí
Lá vem ela, lá vem ela
Lá vem ela Tereza de Benguela

Do Quariterê, senhora do pantanal
Mulher do vento, deusa da revolução
Negra guerreira quilombola ancestral
Sua luta e referência virou dia nacional

(Negra Guerreira Tereza de Benguela – Tonho Matéria)

Julho Chegou! E neste mês trazemos a memória das mulheres negras na formação social do nosso Brasil, celebramos a potência das mulheres negras na resistência ao longo da história, desde a colonização até a atualidade.

Neste Julho das Pretas temos a tarefa de centrar esforços na luta pela valorização do legado das mulheres negras: Tereza de Benguela, Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tia Ciata e Zacimba Gaba. Mulheres que nos inspiram e nos ensinam a importância da luta popular. Destacamos Tereza de Benguela,  que chefiou a luta contra a escravidão no século XVIII no quilombo Quariterê em Mato Grosso leva o nome deste Dia de luta, 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha e Dia Nacional Tereza de Benguela, data que ecoa o protagonismo das mulheres pretas na formação do Brasil, presente nas lutas deste Julho das Pretas.

Neste mês de julho somos convidadas a trazer a memória as mulheres negras escravizadas que estiveram na base da formação do povo brasileiro, valorizar as contribuições da Mãe Preta, que como nos ensina Lélia Gonzalez, nos ensinou o Pretuguês e nos cuidados maternos, foi inserindo os elementos da cultura e da ancestralidade. Somos convidadas a compreender todos os processos de violência – física, sexual, cultural – sofrida pelas mulheres negras no período da colonização no Brasil, evidenciando a marca estrutural da violência contra nossos corpos. Somos também convidadas a honrar a nossa ancestralidade dando continuidade nesta luta.

Mulheres negras no mundo do trabalho

Na esfera do trabalho temos desigualdades de classe, raça e gênero que são históricas e estruturais. Ao analisarmos o rendimento médio real mensal das mulheres ocupadas, elas recebem os salários 21% menor do que o dos homens. No universo das mulheres ocupadas que representam 42,6 milhões, 43% ganhavam até um salário mínimo e, deste total,  52, 7% são negras. Dentre essas 42,6 milhões de ocupadas, 22,3 milhões são negras e 20,3 não negras. Além disso, 43,3% eram informais (sem carteira e sem CNPJ).

Segundo uma pesquisa do Dieese, há 5,3 milhões de desocupadas, sendo que 3,4 milhões são negras e 1,8 não negras.  Isto aponta claramente o quanto as mulheres negras ocupam os postos de informalidade e com condições mais precarizadas. É importante ressaltar que as mulheres em sua maioria são ocupadas com tarefas domésticas e de cuidados. O termo ocupadas ou desocupadas diz respeito ao vínculo de trabalho remunerado, seja ele formal ou não.

Entre as mulheres em condições de desalento, temos  2,3 milhões, sendo 1,6 milhões negras e 672 mil não negras. Desalentadas são mulheres que gostariam de trabalhar, mas que desistiram de procurar porque acham que não vão encontrar, o que evidencia as mulheres negras como público hegemônico dentre os desempregados.

De acordo com a mesma fonte de dados, no âmbito dos serviços domésticos as mulheres representam  91% dos ocupados no setor e ganham 20% menos do que os homens. Ou seja, até mesmo a principal função em que as mulheres negras são maioria, com relação histórica com o trabalho realizado pelas mulheres escravizadas no período colonial, ainda presenciamos desigualdades salariais.

Julho das Pretas é luta por mais oportunidades de trabalho para as mulheres, por condições dignas de trabalho!

Mulheres negras e a violência

A violência é uma questão estrutural e que atravessa os vários âmbitos da sociedade, no entanto, uma de suas principais esferas é a violência doméstica.

Segundo dados do Anuário Nacional da Segurança Pública de 2024, no ano de 2023 tivemos 1.467 vítimas de feminicídios, sendo uma triste estatística de 4 mortes por dia, ou 1 feminicídio a cada 6 horas. Desse universo, 63,6% das mulheres em situação de violência são negras. Em relação ao estupro, foram registrados 83.988 casos, sendo uma média de 1 estupro a cada 6 minutos, sendo a maioria, 61,6% das vítimas, com idades até 13 anos. Esses dados evidenciam que a cultura machista que violenta as mulheres é a mesma que abusa sexualmente de crianças e adolescentes. E deste total de estupros de vulnerável 52,2% são pessoas negras.

Além da violência doméstica, temos a violência policial que afeta diariamente os filhos das mulheres negras nas periferias deste nosso Brasil, as violências diárias nas abordagens abusivas e preconceituosas, como aponta Audre Lorde:

“Mas nós, mulheres negras e nossos filhos, sabemos que o tecido de nossa vida é costurado com violência e ódio, que não há descanso. Não lidamos com isso apenas nas filas de piquete, ou em becos escuros à noite, ou nos lugares onde ousamos verbalizar nossa resistência. Para nós, cada vez mais, a violência permeia a rotina de nossa vida – no supermercado, na sala de aula, no elevador, na clínica e no pátio da escola, vinda do bombeiro, do padeiro, da vendedora, do chofer de ônibus, do caixa de banco, da garçonete que não nos atende.” (LORDE, 2019, p. 244). 

Por isso, é imprescindível termos uma visão integradas das diversas formas de exploração e opressão sobre os nossos corpos negros.

Julho das Pretas é luta pelo enfrentamento à todas as formas de violência contra as mulheres!

Julho das pretas

Além da violência nas desigualdades e injustiças no mundo do trabalho, as violências dentro e fora de casa, as mulheres negras também sofrem violência ao ocupar os cargos nas esferas da política e nos espaços de poder.

Uma expressão dessa violência é a própria desigualdade de gênero e raça no meio político. considerando todos os cargos, foram eleitos em 2024 54,6% brancos, 37,8% pardos e 6,4% pretos (ou seja, 44,2% de pessoas negras). As pessoas negras representam 33,5% de eleitos(as) na prefeitura e 45,8% para vereança. As prefeituras  chefiadas por mulheres representam  apenas 13,2% dos municípios, mas apenas 243 (4,3%) mulheres negras chegaram a esse cargo. Das 79 mil (34,2%) mulheres negras candidatas para todos os cargos em 2024, 5.006 (6,3%) foram eleitas, ou 7,2% se considerarmos o total de eleitos. 

Uma pesquisa realizada em dezembro de 2020 feita pelo Instituto Marielle Franco com o público de mulheres candidatas negras, em que entrevistou 142 mulheres negras de 21 estados em todas as regiões do Brasil e de 16 partidos. Dentre o universo total das entrevistadas, 80% das candidatas negras sofreram violência virtual, 60% sofreram violência moral ou psicológica e 50% sofreram violência institucional. Das entrevistadas, 18% receberam comentários e/ou mensagens racistas ou sexistas em suas redes sociais, por e-mail ou aplicativos de mensagens e 8% foram vítimas de ataques com conteúdo racista durante transmissões virtuais.

Por conta deste cenário de constante violência política que afeta de forma expressiva as mulheres, principalmente as mulheres negras, lésbicas, trans, uma importante conquista legal foi a criação da Lei 14.192/2021, que prevê as penalidades para os crimes referentes à violência política praticada contra as mulheres.

 Julho das Pretas é luta por mais mulheres negras no poder! É enegrecer a política!

A luta do povo é o nosso lugar

Este Julho das Pretas é especial. O ano de 2025 é marcado pela construção do Plebiscito Popular Por um Brasil mais justo e pela 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras. 

O plebiscito é um grande mutirão de diálogo com o povo sobre trabalho, justiça e dignidade. De 1 de julho a 7 de setembro as pessoas poderão opinar sobre duas perguntas: a primeira, se você é a favor da redução da jornada de trabalho sem redução salarial, e pelo fim da escala 6×1 e a segunda, se você é a favor de que quem ganha mais de 50 mil pague mais imposto, para que quem recebe até 5 mil não pague imposto de renda. 

Ocorre que, no Brasil, dados apontam que quem mais paga imposto proporcionalmente às rendas recebidas são as mulheres negras e pobres. Isto porque, no nosso país, os impostos incidem mais sobre o consumo de bens e serviços do que sobre a renda e patrimônio. Na hora de comprar um pão na padaria, quem ganha mais e quem ganha menos paga o mesmo imposto. Só que, na hora do Estado de tributar a renda ou a propriedade, o imposto é progressivo apenas até certo ponto, depois disso a curva da alíquota volta a descer e quem recebe mais passa a pagar cada vez menos. Soma-se a isto às diversas isenções e benefícios que os mais ricos acessam: não tem imposto sobre herança, não tem imposto sobre lucros, entre outros benefícios.

Aqui estamos diante de um dos sistemas tributários mais injustos do mundo, que opera no sentido de reforçar os demais elementos estruturais de desigualdade, como os de gênero e raça. Isso significa dizer que no Brasil a mobilidade social é praticamente impossível. Até mesmo o Estado por meio de seu sistema tributário acaba por perpetuar desigualdades profundamente enraizadas no nosso país, estruturadas desde nossa formação social a partir da colonização. 

Outra face da injustiça no Brasil diz respeito à organização do trabalho, como já pontuamos acima. As mulheres negras ocupam os piores postos de trabalho, na informalidade e na formalidade. Mulheres negras chegam a receber 70% dos valores recebidos por homens brancos nos mesmos postos de trabalho, por exemplo. Sem contar toda carga doméstica e de cuidados não remunerados realizado no lar. Falar do mundo do trabalho é falar da posição das mulheres negras na sociedade. Estamos na base da pirâmide social e essa pressão é fruto e mantenedora da violência da estrutura racista, capitalista e patriarcal sobre as mulheres negras. 

É possível ser diferente. Estamos num tempo desafiador em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim deste mundo estruturado na exploração do trabalho e da natureza. Mas falar das mulheres negras não é falar apenas dos índices e dados desta estrutura opressora. É falar das tecnologias de sobrevivências que construímos desde muito tempo e de muito longe e que se fazem presentes até hoje, afinal, ainda estamos aqui e nossa participação, por mais que tentem, não pode ser ignorada. E é imprescindível. 

A 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, dez anos após a realização da primeira, é a expressão disso. Com o tema “Marcha das Mulheres Negras Por Reparação e Bem Viver”, a meta é levar um milhão de mulheres para marcharem em Brasília no dia 25 de novembro deste ano e envolve grande e profunda mobilização de base em cada estado e cidade do nosso país. O Plebiscito e Marcha se encontram na denúncia das injustiças estruturais da sociedade brasileira e no anúncio da centralidade da organização popular para que possamos, enquanto povo, incidir nos rumos do Brasil. 

Justiça tributária é reparação; vida além do trabalho é bem viver. É fundamental que essas duas iniciativas de mobilização sigam se encontrando nas trincheiras da luta por um Brasil mais justo e na denúncia dos inimigos da classe trabalhadora e das mulheres negras. Sigamos nos encontrando, também, no anúncio de que só a luta muda a vida e inspiradas nas mulheres negras de ontem e hoje construímos com muita solidariedade um país justo para todas as pessoas. 

*Elisa Maria Lucena e Lizian Maria Silva Martins são do Setor Nacional de Mulheres do Movimento Brasil Popular.

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