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Bruno Lima Rocha

O projeto nacional brasileiro na encruzilhada

Retomamos o debate de economia política fazendo uma pergunta incômoda. Existe um projeto nacional brasileiro?

Retomamos o debate de economia política nesta coluna fazendo uma pergunta incômoda. Existe um projeto nacional brasileiro? E diante de sua existência, podemos contar com o andar de cima para sair desta encruzilhada? Por fim, em havendo um projeto nacional, este se configura também em um projeto de classe, de poder do povo organizado para criar maioria social e impor as vontades coletivas de forma parcial ou total?

Na verdade são perguntas. Vejamos alguns elementos antes de formular a questão central aqui apresentada. Na última sexta-feira (9), o presidente Lula esteve presente em Moscou, na celebração dos 80 anos do Dia da Vitória. Basicamente a Rússia recebeu a liderança dos países membros do Brics, Brics+ , da Organização de Cooperação de Xangai e da Comunidade Eurasiática (a principal articulação entre países do espaço pós-soviético).

De Moscou, Lula e comitiva embarcam no dia seguinte para Pequim, na China, onde participam da cúpula entre o gigante asiático e países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), nos dias 12 e 13 de maio, além de fazer uma visita de Estado, com a assinatura de, pelo menos, 16 atos bilaterais.

Na mesma ocasião o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, assinou acordos de longo prazo (com duração de 10 anos) com o par russo, Vladimir Putin. Praticamente todos os elementos-chave de desenvolvimento econômico – compatível com o século 21 – constavam tanto no memorando de entendimento como na assinatura dos contratos de cooperação. A compensação financeira e a liquidação dos contratos não fará uso da moeda dólar estadunidense, o que é mais do que lógico, até porque ambos países sofrem bloqueio econômico e sanções financeiras dos EUA.

De sua parte, China e Rússia assinaram convênios e acordos de complementaridade em mais de 2000 itens ou setores da economia e da vida em comum. Os contratos vão de desenvolvimento econômico, integração de infraestrutura de transporte até missões culturais. Na projeção o valor total dos contratos pode passar de 1 trilhão de dólares. E, obviamente, citamos a moeda dólar apenas como unidade de conta, porque nenhuma compensação será feita nesta moeda – nem vem sendo realizada – nos últimos dez anos entre ambos países.

As relações econômicas entre Brasil e Rússia, por exemplo, estão muito aquém do que poderiam estar. Vejamos. As exportações brasileiras se concentram em soja (33%), café não torrado (18%) e carne bovina (18%). As importações envolvem óleos combustíveis de petróleo ou de minerais betuminosos (57%) e adubos e fertilizantes químicos (34%). Ou seja, exportamos produtos primários (mesmo reconhecendo que na soja tem muita tecnologia embarcada) e importamos bens industriais de baixa complexidade.

Uma possibilidade de convênio seria, por exemplo, uma joint venture com a Rússia para o desenvolvimento industrial de biocombustíveis. O Brasil é um dos líderes do setor em escala mundo e a Rússia (assim como o Irã) tem uma reconhecida expertise na produção de fertilizantes e demais produtos petroquímicos. Outro setor importante da indústria russa é na área de defesa. Mas, a incorporação de material bélico de padrão russo, implicaria uma mudança considerável no tipo de armamento, treinamento e emprego das forças armadas brasileiras. Enfim, uma barreira “de facto” institucional, além da limitação ideológica no sentido da subalternidade aos Estados Unidos.

Tal exemplo singelo acima se repete em distintas áreas do saber, da produção e de boa parte das instituições centrais. Não estamos mais na Guerra Fria, ou ao menos não mais na Doutrina das Fronteiras Ideológicas. Mas ainda assim, parece que o imaginário da colônia ou da pós colônia abunda (chafurda) na mentalidade de militares profissionais brasileiros.

A encruzilhada do projeto nacional Brasil – China

Se formos observar projetos de crescimento (intensificação dos fatores já constituídos) ou de desenvolvimento econômico brasileiro (se associando e agregando novas cadeias de alto valor agregado), dentro das condições de um capitalismo semi-periférico, é praticamente impossível o Brasil (na sua dimensão produtiva) se distanciar da China.

Um projeto está dado, e tem sido observado com entusiasmo pelas frações de classe dominante do agronegócio. Se trata do giro para o eixo do Pacífico, estando o Brasil integrado (de facto), como plataforma de exportação no rumo do megaporto de Chancay (no Peru, com capital e uma joint venture chinesa gerenciando). Se o pólo dinâmico da economia brasileira girar definitivamente para o Centro Oeste, zonas limítrofes do Centro-Sul e o Matopiba (o cerrado e campos gerais do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia que vem sendo devastado para produção de grãos exportáveis), está decretado nosso futuro distópico de “fazendão”.

Caso isso ocorra em definitivo – porque já se dá e em ritmo crescente – viveremos uma dupla dependência: para com a China, como mercado externo e poder de precificação. E também para os Estados Unidos, através de seus fundos especulativos operando com privilégios e assimetria de poder (dentro do Banco Central e no miolo da Faria Lima), em especial nos mercados de câmbio e da dívida. Ou seja, vamos aprofundar as condições atuais, sendo estes dois setores da economia privilegiados, impondo barreiras à entrada e de conversão de excedentes. Se não taxarmos as exportações da agricultura de intensidade e não diminuirmos os ganhos obscenos da especulação financeira, NÃO HÁ SAÍDA ALGUMA.

Outra possibilidade é a chamada integração produtiva com o Brics, e obviamente, sob a liderança da mesma China. O gigante asiático pode ser um comprador de commodities ou um sócio na reindustrialização. A integração na Nova Rota da Seda (que o Brasil negou, embora possa aderir por tabela) seria uma saída. Outra, tão ousada quanto, seria a aplicação de um modelo como na exploração do lítio boliviano. O governo de La Paz exigiu transferência tecnológica e um ganho nacional de 93% em cima da exploração do minério estratégico para este século.

Esta seria uma saída para o capitalismo brasileiro. Reforço, para o capitalismo desenvolvido no país-chave da América Latina e do sul global. Mas agora vem a pergunta central. O país tem uma fração de classe dominante disposta a liderar esse processo? Existem elites (civis) com disposição de luta e convicção nacionalista para confrontar o imperialismo dos Estados Unidos? Dentro do aparelho de Estado, existem setores de elite dirigente, tecnocratas ou militares, que possam assumir essa projeção de poder e as ameaças externas que virão? Até na social-democracia brasileira, há um setor hegemônico no partido de governo para construir esse “projeto nacional”? Evidente que não, adiciono, infelizmente não.

E repito, por mais desagradável que possa parecer, nenhum dos dois projetos acima narrados é necessariamente classista, menos ainda socialista. Este debate, o de construção de um projeto para o socialismo brasileiro, passa por outros caminhos e seria até leviano transformar uma discussão de envergadura em simples palavra de ordem ou slogan político.

Não podemos ser hipócritas. Um projeto nacional que aponta para um desenvolvimento produtivo e industrial é mais interessante do que aprofundar a dependência da exportação de commodities primárias e garantir o faturamento da parasitagem financeira. Mas repito, sem evadir do debate, está longe de um debate sério e com o devido aprofundamento (óbvio, dentro dos limites sensíveis das publicações abertas) da construção do Poder Popular em todos os níveis organizativos. É possível um projeto nacional antiimperialista, mas que não necessariamente se trata de construção de um caminho socialista de luta popular.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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