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O Tarifa Zero BH é um movimento pela efetivação do transporte como um direito social, que atua em Belo Horizonte desde 2013. Buscamos retomar e reinventar a cidade, por meio de um transporte justo,...ver mais

Encruzilhadas da mobilidade em BH: entre o metrô (im)possível e a tarifa zero

Sem transporte de qualidade, não há direito a cidade, há fragmentação e enclaves que se rejeitam

Por Felipe Nunes Coelho Magalhães

Outro dia ouvi um comentário na conversa de boteco do circuito do urbanismo de BH, que me fez tentar imitar o Stimpy (amigo do Ren), no dia em que foi instigado pelo próprio umbigo a entrar dentro de si e deixar o mundo para lá.

Dizem as boas línguas por aí que Belo Horizonte não tem condições de ter um metrô como deveria, com linhas subterrâneas conectando as áreas mais adensadas da cidade, pois não é viável economicamente. Não há escala e densidade o suficiente para o transporte de massa, e com isso o sistema não se sustentaria.

Não sei por onde começar, então começo pela parte que me pega com mais força do que a estupidez dos motoristas dessa cidade nesses tempos.

Neoliberalização

Desde a década de 1980, o neoliberalismo se expandiu e se fortaleceu ao ponto de tornar-se uma religião. Mas não no sentido das práticas religiosas na modernidade (que parecem se esgotar na direção do retorno ao pré-moderno), contidas nos domingos e em alguns dias religiosos, e sim como no cristianismo europeu medieval, que era, ao mesmo tempo, ideário, projeto de transformação do Estado e da sociedade, modo de vida, conjunto de valores, e modus operandi das estruturas de poder.

Aprendi com meus professores de geografia econômica (este campo tão subestimado no Brasil) que é mais interessante pensar em processos de neoliberalização do que no neoliberalismo em si, entendido de forma estática, como se ele fosse uma espécie de software a ser instalado nos diversos hardwares que ele encontra pela frente.

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A neoliberalização avança, progressiva mas não linearmente, de modo parecido com o processo colonizador em suas diversas manifestações pelo mundo. Em seu avanço, ela impõe um tipo de pensamento tipicamente empresarial em situações que normalmente não passariam pelo modo de operação da empresa privada. Uma escola, uma biblioteca ou um parque públicos funcionam de outra forma, não envolvem receita e despesa como um restaurante ou uma sorveteria. Recebem recursos do Estado, que tem a capacidade e a função de reunir e redistribuir estes recursos, e proporcionam um benefício social para a população (a educação das crianças e dos adolescentes, a prática diária da leitura para aqueles que não podem comprar livros, o lazer e o bem estar daqueles que podem frequentar o parque etc).

A generalização da lógica do mercado – o que não se sustenta em termos de custos e receitas, portanto, deixa de existir – envolve o enfraquecimento daquilo que não poderia se sustentar por dentro dele, e com isso deixamos de ter uma série de elementos socialmente importantes, que cumprem funções sociais fundamentais (do atleta de alto rendimento capaz de disputar medalha olímpica, que alguns defendem incluir nesta categoria, ao sinal de trânsito e às vacinas gratuitas). 

A defesa do investimento público na infraestrutura de transporte coletivo já foi feita por pesquisadores em economia urbana no passado, por meio do entendimento (e duma medição concreta) de que o nó cego no trânsito cria problemas de produtividade para as grandes cidades, ao ponto de reduzir o PIB potencial em patamares significativos, muito mais elevados no longo prazo do que o custo (inclusive de manutenção) das grandes estruturas que resolveriam o problema.

No entanto, em São Paulo e no Rio de Janeiro, não foi essa a lógica que predominou na expansão dos sistemas de transporte de massa que aconteceu desde o início do século, mas justamente aquela que frequenta o pensamento por trás da leitura de que em BH não há viabilidade: o sistema cobra tarifas altas, passa por áreas de altíssima densidade demográfica, e atende uma escala de pontos com essa característica que torna o investimento interessante, mesmo do ponto de vista empresarial, que não leva em consideração os benefícios sociais indiretos.

Uma das consequências disso é o preço das tarifas, elevadíssimo, altamente excludente e injusto (sobretudo no Rio, pois em São Paulo o volume de usuários parece compensar um preço mais baixo), e que obriga uma grande parcela da população de baixa renda, não atendida pelos vales-transportes dos empregadores a continuar se sujeitando à humilhação dos ônibus lotados, lentos, presos em engarrafamentos que pioram a cada dia, em parte por causa dos utilitários (“SUVs”) que se multiplicam (para desespero dos ambientalistas e dos ciclistas), noutra parte em função dos motoristas de Uber e derivados, que também se tornaram onipresentes.

Ou seja, o que os autores da ideia de que BH não pode ter metrô queriam dizer é que se for dessa forma que adotaram os vizinhos, não conseguiremos. O que poderia ser uma boa notícia.

BH elitizada

No entanto, para muito além da neoliberalização com cores de extrema direita que assistimos no Palácio Tiradentes (não o vizinho do Paço Imperial, mas aquele mais jovem que Oscar Niemeyer projetou e que fica sempre empoeirado, e agora meio tampado por um mega adesivo de vidro traseiro de carro, de gosto para lá de duvidoso, tentando atrair os investidores que correm na direção do aeroporto para o estado), a longa tradição de elitização excludente, racismo traduzido em urbanismo e ações de expulsão direta e indireta da população pobre de Belo Horizonte para os municípios vizinhos agora cobra seu preço.

Configurou-se uma região metropolitana espraiada e fragmentada, que favorece a própria estrutura rodoviarista parcialmente responsável por sua conformação.

O centro principal é frágil, com conexões relativamente difíceis com muitas das regiões de maior densidade demográfica na área metropolitana. Os mais de 6 milhões de habitantes da terceira maior região metropolitana do país não conseguem sustentar um metrô de investidores privados, pois estão espalhados pela região, em grande medida em função da política urbana elitista praticada no município da capital, avessa à acolhida da população de baixa renda que desde sua fundação vem migrando do interior do estado, e frequentemente ávida por remover favelas de áreas de risco para conjuntos habitacionais em outros municípios. 

Tarifa zero

A consequência é um trânsito que parece não ter solução, com motoristas cada vez mais enlouquecidos, arrogantes, mesquinhos, violentos, que matam ciclistas e pedestres em quantidades assustadoras. BH não consegue pensar em soluções estruturais para seus grandes problemas, em parte por causa da persistência duma pequenez que envolve também suas tradições elitistas, racistas, excludentes. 

A boa notícia é que existe uma chance de chuva nesse deserto, com o avanço do projeto da tarifa zero nos ônibus da capital, que tem condições de frear o aumento exponencial do uso do automóvel e da motocicleta, e de reforçar soluções coletivas – que funcionam justamente por que caminham na contramão do imperativo do mercado –, que podem se expandir na direção da tão esperada consolidação e expansão da malha cicloviária, de forma complementar às redes de ônibus tornadas inclusivas.

Um estudo recente feito por economistas da UFMG concluiu que o impacto do projeto na cidade tende a ser positivo, pois o custo adicional, em relação ao custo atual do vale transporte para as empresas, representaria cerca de 0,91% da folha salarial do município, com uma taxa de R$185,00 por empregado, cobrada apenas das empresas com 10 ou mais funcionários – ou seja, com uma dimensão redistributiva importante. O alívio no orçamento das famílias de baixa renda, que poderão redirecionar o gasto para outras coisas na cidade, beneficia também os setores (supermercados, padarias, bares, restaurantes etc.) que receberão estes recursos.

O ônibus gratuito resolve uma velha contradição instalada no modelo de gestão do transporte urbano no Brasil, que perdeu força com o retorno recente dos subsídios, mas permanece em cena na medida em que os empresários do transporte podem ajustar a oferta nas linhas que operam de acordo com a demanda em cada uma delas. Este formato de regulação cria um ciclo vicioso que os usuários de ônibus conhecem muito bem.

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Ao lado do famoso “quanto mais espero, menos esperarei”, está o “quanto pior o ônibus, pior o ônibus”: quando uma linha perde um certo número de passageiros, seja porque conseguiram dar entrada numa motocicleta ou porque perderam o emprego, o número de veículos operando nela pode ser reduzido, o que torna a vida de quem precisa continuar usando aquele ônibus ainda mais difícil, e cria um incentivo para que mais pessoas migrem para a moto ou outros modais, o que, por sua vez, precariza o sistema ainda mais.

Para além desse aspecto, o aumento no uso do ônibus pela população de renda mais baixa pode criar oportunidades importantíssimas para estes grupos, de educação, trabalho, acesso ao lazer e ao que a cidade tem a oferecer de forma geral (bibliotecas públicas, parques, praças, museus, centros de saúde etc.). O reforço do centro da cidade resultante deste movimento pode transformá-lo na direção oposta de certa elitização que se assiste em algumas localidades.

O direito à cidade – um projeto de democratização ampla e aprofundada daquilo que a cidade é capaz de produzir através de suas formas de adensar interações e criar novas relações – envolve a possibilidade de decidirmos coletivamente sobre o funcionamento das coisas que acessaremos.

Se o acesso não existir, a possibilidade da construção desse direito permanece bloqueada, e a cidade se fragmenta em enclaves e bolsões que se rejeitam e desprezam mutuamente, e ao invés da densidade fomentar o encontro, a criação de coisas novas e a construção de relações virtuosas (de reciprocidade, inclusive), ela alimenta o conflito, o elemento tóxico da partilha do mesmo espaço por muitas pessoas, forjando relações nocivas, violentas, excludentes e injustas.

Felipe Nunes Coelho Magalhães é professor do Departamento de Geografia da UFMG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

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