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Cida Pedrosa é advogada, poeta, escritora vencedora do Prêmio Jabuti 2020 e vereadora reeleita no Recife, pelo PCdoB.

Gaza e a falência da humanidade

Não é estranha a apatia, a inércia, a falta de coragem dos governos mundo afora?

Um assunto tem me tirado o sono é Gaza. Estamos acompanhando um genocídio televisionado, rolando no feed. A cada semana, assisto, mais atônita, à escalada do abismo que cavamos enquanto humanidade. Como pode o mundo assistir calado — ou pior, cúmplice — a um massacre tão sistemático, cruel e planejado?

O Estado de Israel surgiu após a Segunda Guerra Mundial, em meio às ruínas do Holocausto. O povo judeu tem, sim, o direito à existência, à terra, à memória. No entanto, esse direito jamais pode ser construído sobre os escombros de pessoas que moram na região há milênios. Gerações de palestinos e palestinas têm vivido sob sanha destruidora de Israel desde muito antes da guerra declarada, cercados por um regime desumano de privação contínua. Desterrados, sobrevivem entre escombros, fomes e bombardeios.

O que estamos presenciando não é uma guerra. É uma política de extermínio. Conflitos armados têm início e fim, enfrentamento entre exércitos. Israel aniquila, destrói, como os fascistas fazem quando estão no poder. Só eles podem ter bomba atômica, burlar as regras internacionais, impor a lei e a ordem dos homens acima da lei e da ordem. Atiram em quem busca comida. Assassinam médicos. Bombardeiam escolas. Impedem a chegada de ajuda humanitária. Se não é um genocídio, ainda não inventamos palavra que caiba tamanha crueldade.

Financiando os planos maquiavélicos de Netanyahu – que se utiliza da guerra para não ser preso pelos tantos crimes cometidos, inclusive o de corrupção – temos voracidade dos Estados Unidos, sempre afeitos a provocar destroços. Em nome de um Ocidente branco, patriarcal e conservador, Trump tem brincado de guerrear com o destino do Oriente, seja financiando ou incitando novos conflitos.

O vício em pólvora dos americanos contribuiu para demolir cerca de 69% dos edifícios da região de Gaza, segundo as estimativas da ONU, com níveis de destruição considerados “sem precedentes na história moderna”. A “limpeza territorial” do facínora israelense combina com os planos imorais do fascista americano para a Faixa de Gaza.

E se, de um lado, vemos a guerra dos drones, mísseis e ogivas, de outro, seguimos nos moldes primitivos vitimizando, em sua maioria, mulheres e crianças. Até março deste ano, os números do Ministério da Saúde de Gaza apontavam mais de 50 mil palestinos mortos em 18 meses de conflito. Os feridos passam de 100 mil. É impossível contabilizar quem ainda está por baixo dos escombros.

Não há mais infraestrutura, cidades, esperança, espécies, histórias, paisagens, solo. Famílias inteiras foram destroçadas na tentativa de se justificar o injustificável. Por que atirar em quem só está faminto? De que vale destruir uma região inteira para atingir meia dúzia de alvos?

Mais de 16 mil crianças palestinas já foram mortas por Israel na Faixa de Gaza desde outubro | Eyad BABA / AFP

É importante ressaltar: jamais defendi o Hamas. A violência atroz dos grupos extremistas é absurda e inaceitável, ainda mais contra pessoas desarmadas, vítimas da necropolítica dos chefes de Estado bem protegidos em seus esconderijos antibombas. O caldeirão fumegante de desgraças nesse território tão disputado é o resultado de mais de 70 anos de embargo econômico, político, mutilações e desesperança. A Palestina precisa ser livre!

Chegamos em um ponto na curva da história sem muitas possibilidades de volta. Estamos falhando miseravelmente enquanto humanidade, destruindo tudo e todos por onde passamos. Como bem nos alerta a filósofa Donna Haraway, vivemos no “capitaloceno”, navegando na lógica da dominação total, onde o capitalismo armado decide quem vive e quem morre. Dirigindo a máquina mortífera, está a extrema direita, ressurgida em várias partes do mundo, pronta para adiantar o apocalipse dos que não tem bunker, foguete ou dinheiro.

Eu que não tenho os três, resolvi me unir com as minhas colegas vereadoras feministas de esquerda – Jô Cavalcanti (Psol), Liana Cirne (PT) e Kari Santos (PT) – e propormos, na Câmara do Recife, uma reunião pública para debater o tema. Desde sempre, meu partido, o PCdoB, defende o Estado da Palestina e me vi na urgência de trazer para o parlamento a temática.

Além de exigir o fim do genocídio, pedimos que o Brasil rompa as relações econômicas com Israel. Enquanto fornecemos petróleo ao regime de Netanyahu, estaremos fomentando a indústria bélica israelense. Se perdura tanto a guerra, é porque conta com financiamento, ajuda internacional e munições de outros países. O embargo econômico e o rompimento político são pressões necessárias para ajudar a cessar a ocupação de Israel em Gaza.

O silêncio ensurdecedor das nações diante da tragédia, os acordos bilionários que seguem se firmando, a ineficiência do Direito Internacional me assustam e me fazem questionar se não perdemos a capacidade de nos enxergarmos de verdade. Não é estranha a apatia, a inércia, a falta de coragem dos governos mundo afora?

Após a reunião – com o apoio da Federação Árabe Palestina e da Aliança Palestina Recife – encaminhamos um relatório aos deputados e deputadas estaduais, federais, Ministério dos Direitos Humanos, instituições relacionadas ao tema e Presidência da República, para engrossar o coro de quem não só pede providências, mas exige soluções. Não basta mais Lula dizer que é genocídio, precisamos ajudar a frear a matança. A Palestina grita. Tá ouvindo daí?

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