Por Cleiton Donizete Corrêa Tereza
Outro dia, aproveitei que tinha que pegar um medicamento na farmácia mais próxima e resolvi já agilizar o jantar com uma pizza. Quando estacionei próximo à pizzaria, dois rapazes sinalizaram que estavam de olho no meu carro, para depois eu deixar aquele agrado. Como um brasileiro experiente, fingi que não entendi bem, mas não neguei a recompensa, enquanto gravava um áudio, respondendo uma das inúmeras mensagens que a gente deixa para mais tarde nesses dias corridos com incontáveis afazeres.
Entrei na pizzaria, fiz meu pedido e, como de costume, fiquei observando: os comportamentos dos fregueses, as condições de trabalho, as expressões de todos, as formas de comunicação, as características do estabelecimento. Na saída, perguntei para um funcionário, que estava à porta, a respeito dos vigilantes informais. Ele disse que sempre ficavam por ali e que outro dia um deles disse que tirou R$ 120,00 numa noite. “Ganhou mais que eu” – respondeu sorrindo, mas com certa indignação, o trabalhador da pizzaria. Saí sorrateiramente, fazendo um desvio e cheguei ao carro ileso, de todas as formas. Rumei para casa.
Já cansei de ouvir, inclusive de alguns amigos e familiares, quando precisaram contratar alguém, que as pessoas não querem trabalhar. E, sobre isso, nem vou mencionar comentários de redes sociais que, cada vez mais, são pavorosos e podem turvar a compreensão da realidade e causar adoecimentos.
Outro dia, escutei atentamente que parte das pessoas preferiam ficar em botecos e fazer churrascos na segunda-feira a encarar o serviço: “Está difícil demais! Não se encontram mais camaradas como antigamente! Só querem saber de ganhar, não de trabalhar! Não querem nada com o batente! Tem muito vagabundo!”. Lamúrias e mais lamúrias.
Os queixumes fizeram lembrar um amigo dentista, doutor mesmo, dizendo que certa vez a mãe veio falar com ele, elogiando, algo como: “meu filho, que bom que você estudou, tem sua profissão, tem sua carreira e seu talento!”. E ele respondeu: “mãe, ser dentista é o que deu pra fazer e tenho que fazer, talento mesmo eu sempre tive para ser vagabundo!”.
Deixando de lado a soberba moral, até porque não sei dizer quantas vezes, na labuta exaustiva do dia a dia, também invejei os vagabundos, proponho pensarmos de maneira mais criteriosa sobre o mundo do trabalho na atualidade.
O povo brasileiro trabalha muito
Uma reportagem muito bem-feita pelo Repórter Brasil, dessas que não se vê todo dia por aí, publicada em novembro do ano passado, apresentou números e ouviu especialistas, constatando o que, por vezes, já se percebe no cotidiano: excessos de jornada causam mais acidentes de trabalho.
Entre as profissões com carga horária alta – caracterizando 6×1 (ou mais), isto é, quando o empregado trabalha seis dias e folga um na semana – e que estão entre aquelas que mais acarretam acidentes, e tenho dúvida se este é mesmo o termo correto, temos trabalhadores como caminhoneiros, açougueiros, serventes de pedreiro, profissionais da enfermagem, operários, comerciários e cozinheiros.
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Sem meias palavras, fica demonstrado como a jornada de trabalho extenuante interfere diretamente na saúde, na integridade do corpo e na manutenção da vida. A matéria destaca também um aspecto, facilmente observável, mas que de forma seletiva grande parte segue ignorando, referente ao impacto sobre a população negra, historicamente explorada à exaustão e privada de momentos de educação e lazer.
Diante disso, do que se pode observar todos os dias pelas ruas das cidades, pessoas estudando, carregando, dirigindo, cuidando, lavando, consertando, educando, construindo, vamos mesmo seguir repetindo a ladainha que brasileiros não gostam de trabalhar?
Creio ser difícil. Há quem ressalte inclusive a etimologia da palavra brasileiro, junção daquele próprio do Brasil com o sufixo que indica a atividade de trabalhador. O povo brasileiro trabalha muito!
Por outro lado, não dá para condenar aquele que “não trabalha”. Coloco entre aspas pois, como sabido, qualquer atividade destinada a um determinado fim é trabalho. Portanto, uma série de atividades não remuneradas e que, por vezes, nos trazem tanta satisfação, como preparar um almoço ou escrever um texto, também constituem trabalho.
Precariedade e exploração
Em uma condição de tanta precariedade para o trabalhador, com atividades cada vez mais alienadas, com baixos salários, desrespeito às leis trabalhistas, avanço da plataformização e terceirização – que não assumem responsabilidades e ampliam a exploração – e os empresários ricos fazendo de tudo pelos pobres trabalhadores, menos descer de suas costas, como disse sabiamente León Tolstói, talvez seja melhor mesmo ficar na esquina cobrando pela ilusória seguridade dos carros, ao invés de trabalhar regularmente numa pizzaria.
Talvez seja melhor mesmo fazer churrasco no boteco da quebrada na segunda-feira. E se virar a partir de terça, ou de outro dia, diante da humilhação e risco de vida às quais um contingente enorme de brasileiros é submetido diariamente perante a brutalidade capitalista.
E como ensinou Marx, em última instância, a questão não é nem ganhar mais ou trabalhar menos, mas trabalhar de outro modo, com sentido e liberdade. Porém, frente às condições atuais, a redução já configura um avanço inegável.
Não por acaso, em uma das manifestações de que participei em favor do fim da escala 6×1 no final do ano passado, que coincidiu com um feriado, no fim da semana, os ativistas puderam entrar tranquilamente na maioria das lojas, distribuir panfletos e dialogar com os trabalhadores. Sabe por quê? Porque os patrões, ou seus subordinados diretos, não estavam lá. Feriado, meus queridos! Dia de viajar, namorar, praticar esportes, festejar, pintar um quadro, cheirar uma flor, ou qualquer outra coisa prazerosa nessa vida! Mas não para os trabalhadores submetidos às condições enfadonhas e abusivas, é claro!
Os mesmos que reclamam que o povo brasileiro não gosta de trabalhar, que os salários são altos demais, que o país vai quebrar a cada mínimo direito trabalhista reivindicado, são aqueles que mais desfrutam dos prazeres da vagabundagem e não se importam em pagar por um jantar aquilo que seu empregado recebe em um mês. Pelo contrário, os endinheirados podem se utilizar disso como elemento positivo para serem os diferenciados.
E ainda temos que gostar de trabalhar? Tolice acreditar. A luta de classes está posta. E não foi pelas mãos e pelas mentes calejadas dos trabalhadores.
Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor Doutor do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor de História nas redes municipal de Poços de Caldas e estadual de Minas Gerais por quase duas décadas. É especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP).
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal