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Cidade das Letras: literatura e ...

Janete Lins Azevedo, memórias de uma professora

Que as lembranças narradas no livro pela Janete encontrem ecos nas experiências dos leitores e das leitoras

Por Luciano Mendes

O estabelecimento de uma lembrança, pela rememoração do passado, e sua articulação num texto, é, ao mesmo tempo, um ato contra o esquecimento e a radical tomada de consciência de que é impossível lembrar de tudo. Daí que, narrar o passado, a própria experiência do passado, depende não apenas do esforço individual do narrador, mas também da intensidade do compartilhamento desta experiência com o grupo que dá, ou produz, sentido às lembranças.

Walter Benjamin dizia que existem dois representantes (modelos) arcaicos de narradores: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. E, na interpenetração de ambos, está a origem do “reino narrativo” em toda a sua extensão. Retorno a estas reflexões de Benjamin, que me acompanham desde há muito tempo, a propósito da leitura do memorial da professora Janete Azevedo, publicado recentemente.

A sua leitura, de várias formas e por diversos caminhos da minha memória, fez vibrar em mim lembranças, como a demonstrar que suas lembranças e, talvez, seus esquecimentos, também me pertencem. É como se tivéssemos, por assim dizer, frequentado as mesmas oficinas, compartilhando experiências comuns, realizado as mesmas viagens.

Acompanhando as memórias estabelecidas em texto pela Janete pode-se perceber que a narrativa que aqui se estabelece, é devedora tanto do modelo do camponês sedentário quanto do marinheiro, para utilizar os modelos propostos por W. Benjamin, e que ambos se fundiram em oficinas de trabalho coletivos, seja nos momentos de sua formação, seja nos momentos de sua atuação profissional.

De uma parte, a Janete migrante, que se desloca nos territórios que lhe são estranhos, guiada por mãos alheias, por conhecimentos de outros, aos quais ela estava ávida por aprender. Ela caminha, por assim dizer, ao encontro deste outro, destes outros, com a consciência aguda de seu desconhecimento.

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Busca conhecimentos, novas experiências. Guiada por mestres mais ou menos competentes em seus ofícios, vai adentrando o mundo das ciências sociais e, aí, descobrindo novos mestres: Marx, Weber, Durkheim, Bourdieu.  

Em boa parte, o memorial é uma ação por este re-conhecimento, pelo estabelecimento de uma memória do processo pelo qual ela se tornou o que é. Mas, de outra parte, é também, ainda que de forma mais comedida, o estabelecimento de uma memória do des-conhecimento, ou seja, daquilo que ela teve que deixar para trás para se tornar quem se tornou.

Mas as viagens de Janete não pararam por aí. Além de buscar novas oficinas onde os conhecimentos eram cultivados, viajou ela em direção a novas formas de ser mulher e viver as dores e as delícias das condições femininas em diversificados tempos-espaços de experiência coletiva.

Ao narrar as suas memórias, ao articulá-las com memórias e histórias alheias, que também são suas, caminha ao encontro do movimento feminista e das mulheres do meio rural, por exemplo, para produzir novos entendimentos e conhecimentos de histórias que estão sendo tramadas desde muitos antes que ela nascesse.

Conhecer e transformar

Ávida não apenas por conhecer o mundo, mas também para transformá-lo (ressoam aqui, nossas leituras das famosas Teses de Marx sobre Feuerbach, eu bem sei), ao longo de seu percurso, aqui delineado, Janete veio escolhendo – assim mesmo, no gerúndio, pois esta é uma escolha que precisa ser renovada a cada dia – o campo da educação como sua área de atuação profissional e de vivência de suas experiências pessoais as mais marcantes. Aí, sem deixar de viajar, estabeleceu suas oficinas e começou, ela também, a receber aprendizes, estrangeiros de outras áreas e territórios.

O memorial da Janete Azevedo se constitui, assim, no esforço pela constituição de uma trajetória, de uma cartografia que dê visibilidade aos deslocamentos contínuos e constantes de uma pesquisadora pelos territórios da educação e de sua própria vida como aprendiz e como mestre da arte e o do ofício de pesquisar e ensinar.

Uma pesquisadora pelos territórios da educação e de sua própria vida

É disso que trata a autora quando vai fazendo desfilar, no texto, autorias com as quais aprendeu, com as quais dialogou, das quais se aproximou ou, eventualmente, se afastou. Num esforço contínuo de corte e sutura, vai atuando como artesã que tece sua história, sabendo que os restos são tão necessários quanto os alinhavos que sustentam a narrativa.

O trabalho da memória, nos ensinou Ecléa Bosi, ocorre no presente e tem como matéria o passado difuso e, às vezes, confuso, que queremos articular. Consciente disso, Janete busca conferir sentidos a uma existência comprometida com a construção de um mundo melhor para todas as pessoas que o habitam.

Nesse fazer (fazer-se) ético e político, a memória e a história são dimensões abertas, inconclusas, prenhe de inéditos viáveis, para lembrar Paulo Freire, um também querido da autora. Por isso, subjacente ao esforço de escavação de suas memórias de formação e atuação profissional está, também, a perspectivação de possibilidades, de abertura de horizontes, em uma realidade sobre a qual ela continua a atuar.

Fruto do trabalho da memória, do discernimento ético e epistemológico, do compromisso político e institucional, o texto da Janete é, para todas as pessoas que com ela convivem e aprendem, um presente. Em tempos de rarefação do pensamento e de dispersão política, a densidade de suas reflexões nos orientam sobre caminhos possíveis para a prática profissional e escolhas pessoais.

Desejo, pois, que lembranças narradas no livro pela Janete encontrem ecos nas experiências dos leitores e das leitoras, como encontraram nas minhas.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

P.S.: Parte deste texto apareceu como prefácio ao livro Pesquisar e ensinar políticas de educação: memórias de uma professora, publicado pela Editora Escola Cidadã (Belo Horizonte, 2024). O livro pode ser acessado gratuitamente na página da Editora.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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