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Cidade das Letras: literatura e ...

Em Belo Horizonte, um ataque à laicidade do Estado 

Ao focar exclusivamente na Bíblia, a lei revela sua verdadeira natureza: uma tentativa de doutrinação velada

Por José Antonio Sepulveda

O Projeto de Lei N° 825/24, que propõe a leitura da Bíblia Sagrada como recurso paradidático nas escolas públicas e particulares de Belo Horizonte, representa uma afronta ao princípio constitucional da laicidade do Estado.

Apesar de se apresentar como uma iniciativa de “disseminação cultural, histórica, geográfica e arqueológica”, a medida carrega um claro viés confessional, privilegiando uma única tradição religiosa em detrimento da pluralidade que caracteriza a sociedade brasileira. 

O Estado laico, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (Art. 19, I), exige imparcialidade religiosa nas instituições públicas, impedindo que qualquer credo seja oficializado ou promovido pelo poder público.

Ao instituir a leitura da Bíblia como atividade pedagógica, o projeto ignora a diversidade religiosa do país, onde milhões de cidadãos professam outras crenças ou nenhuma. Ainda que o Art. 2° da referida lei assegure que “nenhum aluno será obrigado a participar”, a própria inserção da Bíblia como recurso didático já configura uma promoção indireta do cristianismo, criando um ambiente escolar potencialmente excludente para alunos de outras religiões ou agnósticos e ateus. 

A justificativa de que a leitura bíblica serviria para fins “culturais e históricos” é frágil. Se o objetivo fosse realmente pedagógico, o projeto incluiria textos sagrados de múltiplas religiões (como o Alcorão, os Vedas ou os mitos indígenas e afro-brasileiros), garantindo uma abordagem comparativa e não confessional.

Ao focar exclusivamente na Bíblia, a lei revela sua verdadeira natureza: uma tentativa de doutrinação velada, sob o disfarce de atividade educativa. 

Mesmo com a ressalva de não obrigatoriedade, a pressão social em ambientes majoritariamente cristãos pode levar à marginalização de alunos que optem por não participar.

Além disso, a escolha de conteúdos bíblicos ficará a cargo do Executivo (Art. 3° da Lei n° 825/24), abrindo espaço para interpretações sectárias e desrespeito às diferentes correntes do cristianismo (que divergem, por exemplo, sobre quais livros são canônicos). 

A proposta fere não apenas a laicidade, mas também o pluralismo e a liberdade de consciência, pilares da democracia brasileira.

Laicidade protege direitos

É importante ressaltar que a laicidade é um princípio fundamental para as democracias, pois garante a imparcialidade do Estado em relação às religiões, assegurando a liberdade de crença e a igualdade entre todos os cidadãos.

Em um Estado laico, as leis e políticas públicas não são influenciadas por dogmas religiosos, o que permite que diferentes grupos convivam em harmonia, respeitando a diversidade. 

Além disso, a laicidade protege os direitos individuais, evitando que uma religião dominante imponha seus valores sobre os outros. Isso fortalece a justiça social e a liberdade de expressão, elementos essenciais para uma democracia pluralista. Quando o Estado é laico, ele pode focar no bem comum, sem privilegiar ou discriminar qualquer grupo religioso, promovendo assim a coesão social e o respeito mútuo. 

Se o interesse do Estado com essa lei é enriquecer o ensino com aspectos culturais e históricos das religiões, o caminho é incluir o estudo comparativo das tradições religiosas em uma disciplina já existente, como História ou Sociologia – jamais transformar a Bíblia em material paradidático privilegiado.

O Estado não pode ser instrumento de proselitismo, e a escola pública deve ser um espaço de acolhimento, não de imposição simbólica de uma fé sobre as demais. Sem laicidade, há o risco de conflitos religiosos, exclusão e violação de direitos, ameaçando a própria estabilidade democrática.

Portanto, a separação entre religião e Estado é vital para garantir uma sociedade justa, inclusiva e verdadeiramente livre.

José Antonio Sepulveda é professor associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Coordenador do Observatório da Laicidade na Educação – OLÉ.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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