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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da U...

Os ofícios e a vida: memórias de saberes não sabidos

No início eu demorava bastante. Hoje não, com método, termino rápido

Por Luciano Mendes

Quando as comportas da memória se abrem, nunca se sabe que tipo de lembranças escoam do fundo alma.  Outro dia, em Belo Horizonte, apareceram duas ou três baratas – na verdade, foram precisamente duas as encontradas, mas certamente havia mais do que estas –, e precisei contratar uma pessoa para dedetizar o cafofo em que guardo livros e lembranças, e no qual morava até há alguns dias.

Indicado por um amigo dileto e querido, lá compareceu o Rogério, armado, quero dizer, munido, de todos os apetrechos necessários ao trabalho: uma pequena seringa e uma pequena bomba com o remédio, ou seja, com o veneno. Foi um trabalho rápido e certeiro.

Foi tão rápido que, apesar da pequenez do apartamento, eu mesmo fiquei admirado e expressei isto ao Rogério. Ao que ele me respondeu que a rapidez tem a ver com experiência. “No início, ele disse, eu ficava tonto igual às baratas, ia de um lado para o outro, sem muita noção. Começava na cozinha, pulava para o quarto e, assim, demorava bastante. Hoje não, faço diferente, com método, sem ir de um lado para o outro. Aí, termino rápido.”

A explicação, por demais óbvia e esclarecedora, me pareceu convincente e suficiente, ainda que eu tenha imaginado que, pelo preço, o serviço seria mais demorado. Mas a fala do Rogério veio a ser mais produtiva quando, dias depois, no encontro com o verso da música “Solidão de amigos”, do cantor Jessé, de 1982, produziu outros efeitos de memória.

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Diz o verso retido: “A saudade lembra de lembranças tantas / Que por si navegam nessas águas mansas”. Não estou certo que seja mesmo a saudade, mas o certo é que quando ouvi o verso, me lembrei da explicação do Rogério, e ambas as coisas me levaram de volta à minha adolescência, quando, em muitas ocasiões, eu trabalhava de servente do pedreiro que era meu pai.

Servente de pedreiro

Era um tempo em que eu estudava, jogava bola, engraxava nos finais de semana e, nas férias ou nas folgas, acompanhava meu pais nas obras. De pequenos reparos a casas inteiras, foram muitas as empreitadas em que atuei.

Numa delas, especificamente a que me veio à lembrança hoje, estava meu pai fazendo o reboco de uma parede numa empresa de transporte e eu era o servente.  A obra já estava meio atrapalhada porque no meio da coisa, deu uma semana inteira de chuva e nada fazia a massa puxar para ser desempenada. Além disso, o gerente ranzinza da transportadora não ajudava a tornar o ambiente melhor e mais produtivo, por assim dizer.

Mas, eis que o sol apareceu e era preciso tirar o atraso. O problema é que o pequeno, inexperiente e fracote servente que eu era, não dava conta de abastecer o caixote com a massa necessária e em tempo hábil.  Por isso, de vez em quando, ou seja, muitas vezes ao longo do dia, era preciso que meu pai parasse o trabalho de pedreiro para mexer a massa, devida à minha demora.

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Numa dessas vezes, que ficou gravada em minha memória para sempre, e hoje retornou, eu peneirei a arreia, medi o cimento e misturei tudo. Abri um buraco no meio da mistura e coloquei água em maior quantidade do que o usual. Então, eu ficava rodando de um lado para o outro em torno daquele monte de massa, de tudo fazendo para que a água não entornasse para fora da massa.

Foi quando chegou meu pai, já cansado de esperar e, notando os modos como eu mexia a massa, me disse de forma enérgica: “Não sei porque você fica alisando essa massa de um lado para o outro. É preciso dar saída nesse negócio, e não se faz isso com todo esse jeito”. Falando isso, ou mais ou menos isso, pegou a enxada da minha mão e abriu aquela massa toda, entornando água para todos os lados, à qual ele puxava com maestria, mantendo-a próxima ao monte que ia se formando no centro do círculo que ser formara.

Ao fim de poucos minutos e sem muito esforço aparente, lá estava ela, a massa, prontinha, perfeita e pronta para ir para o caixote. Experiência, maestria, força física… de tudo um pouco.

Sabe, mas não sabe que sabe

Essa lembrança sempre escorre de minhas memórias. Ela se refere à destreza, à maestria, que vem com a experiência, algo que passa a fazer parte do corpo e das formas de pensar e fazer, e sobre a qual a gente tem pouca ou nenhuma consciência, a não ser quando falamos do trabalho da memória.

Aí me veio à lembrança, enquanto tento terminar essa crônica, aquela vez em que o Tostão perguntou:

“Por que Dida defende tantos pênaltis?”. E respondeu: “estudo científico realizado na Inglaterra mostrou que existe uma clara relação entre a maneira de o atleta correr para a bola, a posição do corpo no momento da cobrança do pênalti e o local exato em que a bola vai ser chutada. É óbvio. Imagino que o craque Dida percebe tudo isso. Antevê o lance e sabe instantes antes da cobrança, pela posição do corpo do cobrador, aonde a bola vai chegar. Ele nega. Diz que escolhe um canto e salta. Será? Dida sabe, mas não sabe que sabe”.

Eu nunca fui goleiro, mas já fui servente de pedreiro e atacante, e sei que é bem assim.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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