Por Luciano Mendes
Saímos os três de Belo Horizonte com destino à Chapada Diamantina e, de lá, para Petrolina, Salvador, Ilhéus, Canavieiras e Belmonte, pretendendo fazer a volta para casa pelos caminhos do rio Jequitinhonha.
Conduzidos pelo Tarcísio Mauro, não podíamos adentrar o sertão por outro caminho que não fosse aquele que passa por Cordisburgo, a terra de Guimarães Rosa. Dali, rumamos para Montes Claros, mas formos dormir mesmo em Janaúba. No caminho, muitas histórias.
Logo depois de Cordisburgo, à beira da estrada, um trabalhador roçava o mato com uma cortadeira dessas movidas a gasolina. No alto da estaca que sustentava a cerca, nada de bornal, capanga ou moringa d’água. Lá, pontificava, solenemente, um capacete de motoqueiro. Sinais dos tempos, comentamos nós que acabávamos de falar dos tropeiros e tropeiras (como esquecer Diadorim?), que pelas veredas afora, abasteciam o sertão de alimentos para o corpo e para a alma. De amores, de medos e tremores também se faz o sertão ser-tão dentro de cada um de nós, já nos lembrava o grande Guimarães Rosa!
Nisso, o Tarcísio já nos recordava do xará Tarcísio Meira e da Glória Menezes, há quase meio século, e que as transformações no mundo e no Brasil se representavam por meio do “Cavalo de Aço”. As motos, que aposentaram as tropas e os tropeiros, deixaram à mingua, pelas estradas afora, milhares de jumentos sem outra serventia do que morrer atrapalhando o trânsito. Sinais de um tempo em que a tecnologia e a velocidade se impuseram, e em que as relações tendem a se dissolver.
E por falar em velocidade, mais demorada do que a nossa, naquele dia, foi a viagem de Valter Bracht, o terceiro personagem de nossa aventura, de Vitória a Belo Horizonte, no dia anterior, pelo trem-de-ferro, essa coisa tão fora-de-moda no Brasil como a própria palavra demodè!
Mas ficamos sabendo que, de lembranças tantas daquele trem-de-ferro, vive também o organizador-mor de nossa viagem, o Tarcísio. Diz ele, com os olhos marejados de sentidos muitos, que não foram poucas as vezes em que subiu na boleia em Colatina, vindo para BH, há quase meio século, para estudar em Belo Horizonte. Na partida e na chegada, o coração mais apertado do que a matula que trazia, espremia e exprimia no peito uma certeza outra da que a viagem prometia. O Espírito Santo nunca há de faltar nas lembranças e nas ideias do sonhador que ele se tornou!
Referindo-se a tropeiro, o Valter lembrava que também seu pai, e o filho com ele, tropeava gado pelos sertões do Paraná. Tempos de vida difícil, regada a muito trabalho, altivez e alguma esperança. Quem sabe um dia melhora? Lembrava eu, cá comigo e com eles, que meu pai, lá pelos idos dos 1950, também tropeiro foi, só que de tropa de burro, com madrinha e sincero, a carregar cama, café e o que de tudo mais houvesse, inclusive muita aflição.
Paisagens e memórias
As Minas, que são muitas, ficaram para trás, e nos embrenhamos no sertão. Ao contrário dos pneus, que não deixam marcas no asfalto, as paisagens entram pelos olhos, mexem com as sensibilidades e despertam lembranças no corpo – e deixam nele as suas marcas também: corpos sexagenários demandam descanso e boas acomodações!
Viajar é preciso; viver não é preciso, penso eu com o poeta. As estradas de poucas margens não deixam de selar destinos e caminhos. Mas a imaginação avoa, o motorista espia o céu e o sol, e avaliamos que, deixando ao largo a grande Montes Claros, poderíamos tomar pouso em Janaúba. Com um olho na estrada e outro no tanque, lá aportamos pelo final da tarde.
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Adentramos à Bahia e paramos em Brumado para uma experiência gastronômica inédita para os três viajantes. E quem nos proporcionou foi a Angelita! Comemos bode, com pirão de maxixe, palma picadinha, feijão e arroz! Delícias! Aliás, é bom que se diga, desde já, que as experiências gastronômicas estão entre as melhores coisas da viagem. Merecem uma crônica à parte!
Brumado, Rio de Contas, Mucugê, Ibicoara, Lençóis, Juazeiro, Pretrolina… as cidades e seus limites não limitam a imaginação, e a gente se transforma no sertão. Nelas, histórias de tantas pessoas, de tantas populações não humanas, se entrelaçam e nos comunicam belezas, encantos, lutas muitas e duras dificuldades. São memórias de populações inteiras escravizadas, fugidias de cativeiros, criadoras de quilombos e que ainda hoje vivem no rescaldo de violências sem fim. São histórias de sorrisos e ternuras, de bordados, de músicas lindas e resistências mil.
Postos de gasolina, quiosques, lanchonetes, hotéis, restaurantes, sorveterias, bares, pequenos e grandes comércios. Uma multiplicidade de jovens com seus projetos de vida. Há muito trabalho e pouca esperança nos olhos de algumas destas pessoas. Outras sonham e são sonhadas. O limite pode ser arredado um pouquinho pra lá e a cerca pode ser cortada.
Do outro lado, há sempre um espetáculo à espera por olhos famintos de alegria e corpos que expressam teimosias. O que o sertão pede da gente é coragem, parecem dizer, sem carecer de explicações.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal