Por Luciano Mendes
“A vida é arte do encontro
embora haja tanto desencontro pela vida.”
(Vinicius de Moraes)
Voltando da viagem, eu pensava que uma aventura destas, com a tranquilidade e riqueza como foi, somente pode ser realizada graças aos encontros que a antecedem e que ocorrem durante a travessia. Fiquei tentado, ao escrever este texto, a recuar no tempo e datar o início da viagem lá nos anos de 1980 quando eu conheci o Tarcísio, nosso timoneiro, e quando ele mesmo conheceu o Valter Bracht, nosso tertius na viagem.
Se eu fosse falar de quando conheci o Luiz Rena, que ajudou a preparar a viagem mas não pode partir conosco, seria mais longa a história ainda. Mas desisti, claro, inclusive porque sempre haverá um antes, e um antes do antes, a ser perseguido.
Preparação houve, claro, e ficou quase toda ela a cargo do Tarcísio. E, justiça seja feita, ele brilhou em mais esta tarefa. Pensou em tudo e, no mais, foi perfeito! Mediados pelas tecnologias, encontramo-nos digitalmente durante meses. Roteiros, ideias, sonhos de viagens nunca dantes realizadas, estradas já conhecidas. Trocamos ideias de um tudo. Mas, também achei que sobre isto muito eu poderia falar, mas que pouco poderia dizer. A não ser que quisesse me tornar um guia de viagem – ou agenciar os serviços de organização de nosso timoneiro! – o que não é o caso.
Acabei me enveredando, então, pela mobilização das lembranças sobre uma categoria muito específica de encontros: aqueles inusitados, não previstos no roteiro, e que foram, no mais das vezes, fruto do acaso. É deles, não por acaso(!), que nos fala, por exemplo, o diretor Wood Allen em um de seus últimos filmes: Golpe de Sorte (Coup de chance, 2023). Na película, os acasos abundam e a sorte de todo mundo depende deles. Foi ele que me inspirou a pensar aqui.
Jovina
Mas, notará quem lê este texto, que já começo me desmentindo, pois não foi bem por acaso que nos encontramos, no Quilombo da Barra, com a Jovina, líder comunitária, artesã, vendedora dos produtos da comunidade e narradora de histórias tantas. Quem nos conduziu até ela foi o Lé, nosso guia lá em Rio de Contas.
Ela nos recebeu no pequeno espaço ocupado pela lojinha em que atende aos visitantes. Logo, de cara, ou melhor, em sua cara, em seu rosto, vimos estampados um dos sorrisos mais intensos dos muitos e intensos sorrisos que encontramos nas idas e vindas por aquelas paragens.
Aquela mulher negra, franzina e toda sorrisos, nos atendeu, mostrou os produtos e, sobretudo, nos contou das histórias de violência e resistências vividas pelo seu povo, bem ali onde estávamos.
Transmitiu com maestria e segurança, com altivez e bonança, muito mais do que conhecimentos. Transmitia a certeza de que uma das coisas mais importantes e impactantes na luta contra os poderes da morte é a alegria. Estampada em seu rosto, em seus lábios, a alegria, mesmo em meio a uma vida dura e difícil, parecia ser a chave-mestra de suas histórias.
Adelina
Cruzamos meio mundo, da Chapada a Petrolina e, de lá, para Belmonte, para nos encontrar com a Adelina, professora e cuidadora da cidade.
Estávamos, o Tarcísio e eu, passando por uma rua da cidade, meio que perdidos depois do maravilhamento com o passeio em meio ao mangue, quando nos deparamos com o cenário e a cena de um canteiro central da rua todo enfeitado de pequenas placas com música, poemas e outras mensagens que coloriam e acolhiam nossos olhos curiosos. Ficamos indo e voltando tirando fotografias e lendo os textos em voz alta.
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Nisso, notando nosso interesse, saindo do portão de sua casa, veio ao nosso encontro a Adelina indagando se estávamos gostando. Diante de nossa afirmativa, explicou-nos que há alguns anos vinha trabalhando no enfeitamento da rua. A ideia não nos pareceu tanto de educar a população, mas de oferecer a arte bem ali onde as coisas pareciam um pouco inóspitas.
Não bastasse isso, convidou-nos para entrar em seu quintal, ofereceu-nos água de coco e nos contou um pouco da vida. O quintal, tal como a rua, cheio de flores, pequenas obras de arte e de grandes expectativas de conseguir tornar o mundo, mesmo que fosse aquele seu mundinho e a rua, lugares mais hospitaleiros e, de novo, alegres.
Extasiados pelas experiências em Belmonte e em Canavieiras, queríamos voltar para as Minas e os Gerais. Por conta da interdição de uma ponte na BR 101, e para fugir de um desvio de 70 quilômetros de estrada de terra, tivemos que dar uma volta de mais ou menos 100 quilômetros e, para nosso azar, cair numa péssima estrada de terra para chegar a Almenara, onde passamos a noite.
De Almenara a Araçuaí a viagem transcorreu tranquila, sempre nos oferecendo pontes, igrejas e lindos pores do sol para as fotografias do dia.
Adilson
Foi em Itinga, quase chegando ao nosso destino do dia, que, perdidos sobre como chegar a uma “ponte azul que vimos do alto da estrada”, pedimos informações ao Adilson.
Pois então, foi nosso encontro mais inusitado, surpreendente e de aquecer o coração. Adilson, dono de uma pequena venda, não apenas parou o que estava fazendo para nos ajudar, mas também nos contou, em alguns poucos minutos de conversa, ali, no meio da rua, sobre as maravilhas da cidade e da importância de Lula para o seu desenvolvimento.
Emocionado, falava de tudo um pouco e chamava Lula de “meu pai”, dando-nos ideia do quanto estima o atual presidente. Não demorou a dizer de onde viera parar ali. Quando disse que era do Espírito Santo, quem ficou sobressaltado foi o Tarcísio, o capixaba mais empedernido que eu conheço. O caldo, quero dizer, as lágrimas de ambos entornaram, então, foi quando descobriram eloquentemente que eram da mesma cidade, Santa Tereza, e que a mãe do Adilson estava, justo naqueles dias, em São Roque do Canaã, passeando. A rua quase veio abaixo com a gritaria dos dois. Mais uma vez, só risos e emoções a reanimar todo mundo no mundo.
Val e Maria
Com o rosto encharcado e a alma repleta de chão, aportamo-nos em Turmalina. Já era noite e, como o hotel indicado pelo nosso colega João Valdir, que é da cidade, estava lotado, entramos na cidade e paramos para ligar para uma pousada indicada pela pessoa que nos atendeu. Para resumir: depois de andar centenas de quilômetros estávamos parados justo em frente da tal pousada.
Coincidência é pouco para dizer disso, como nos lembrou no outro dia a Val, dona da pousada, ela também, para nossa surpresa, prima de uma amiga dileta do Tarcísio em Turmalina: a também professora Janeuce Cordeiro. Parecia que os astros faziam um positivo complô para nos guiar.
E guiou-nos, por meio da Janeuce, até a Maria, mulher de 73 anos, viúva, analfabeta, pessoa de simplicidade e alegria de viver inigualáveis. Caminhando, passeando, fazendo almoço e jantando. Depois, claro, de acompanhar o lançamento do livro do Tadeu Martins sobre a força do povo do Vale. Maria foi nos contando a descoberta da vida depois da morte do marido e de um casamento de dores e sofrimentos.
No caso dela, a morte abriu, quase literalmente, as portas para a vida, e uma vida que ela parecia agarrar de unhas e dentes, e a curtir intensamente nas pequenas grandes coisas do dia a dia: ir à feira, comprar fiado, almoçar ou jantar com a amiga Janeuce.
Em seus casos, em seu caso, a gente pode ver um pouco da história de muitas mulheres brasileiras, inclusive na prática de, antigamente, pedir alguém para escrever cartas para seu namorado. Central do Brasil passeava bem debaixo de nossos olhos, mais uma vez encharcados, mas felizes da vida e com a vida.
Encontros, acasos, sorte…. O que seria a vida sem estas coisas? Na verdade, talvez nem vida houvesse. Valter Bracht nos falava da ambiguidade como potência. Pois disso aprendemos na prática: foi preciso organizar tudo muito bem para dar lugar à sorte e ao acaso, este sempre companheiros de viagem.
Enquanto houver surpresas, vida haverá!
*Para Gilmar Souza, da Casa de Cultura de Turmalina, que move este e outros mundos pra fazer a vida do povo do Vale mais alegre e boa de se viver.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Leia outras crônicas e artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
—Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal