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Base Nacional Comum Curricular e ação docente: uma conversa sincera

É preciso mobilizar conhecimentos para construir mudanças possíveis

Por Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Você se lembra de uma propaganda do governo federal, veiculada de forma maciça em 2018, sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)?

O texto, acompanhado de imagens idílicas (sorrisos, colorido, comida, roupas limpas, harmonia, organização) envolvendo supostos cotidianos escolares nas regiões brasileiras, dizia: “O Brasil terá, pela primeira vez, uma Base Nacional Comum Curricular. O documento é democrático e respeita as diferenças. Com a Base, todos os estudantes do país, de escola pública ou particular, terão os mesmos direitos de aprendizagem. Isso é bom! Se a base da educação é a mesma, as oportunidades também serão”.

Uma bela peça publicitária!

Entretanto, por mais que queiram nos convencer do contrário, a existência não se resume a propagandas. Como alertavam à época pesquisadores, professores, sindicatos e associações com compromisso efetivo com a educação e a cidadania, a BNCC não resolveria os desafios da educação brasileira e ainda poderia criar novos problemas.

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É conhecido e notório, para todos que entendem de educação, que mudanças curriculares (embora necessárias) não têm por si só o poder alardeado pelos governos. Também é sabido que o caráter democrático divulgado não condiz com a história.

A Base foi uma das consequências de um golpe e implementada sob marretadas empresariais, capitaneada politicamente pela dupla Michel Temer e Mendonça Filho. É sabido também que essas alterações curriculares sobre premissas neoliberais, isto é, capitalistas, advindas da teoria do capital humano, resultando na ênfase exacerbada e instrumental do ensino por habilidades e competências, constituem um movimento internacional, difundido por agências como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Não vou entrar em detalhes aqui, mas, entre as muitas indicações possíveis sobre o assunto, deixo A reforma empresarial na educação – nova direita, velhas ideias, de Luiz Carlos Freitas, A escola não é uma empresa, de Cristian Laval, Escola pública: tempos difíceis, mas não impossíveis, organizado por Nora Krawczyk, e, especialmente a edição nº 139 da revista Educação e Sociedade – Revista de Ciências da Educação sobre o Ensino Médio: Antigas e novas polêmicas, acompanhada do dossiê Centralidade do ensino médio no contexto da Nova Ordem e Progresso.

Cabe lembrar que no processo de construção da BNCC, que deve contemplar 60% do currículo, e na reformulação e criação de outros documentos de referência – insisto, de referência, não de encíclica inquestionável e imutável, como muitas vezes são tomados – tanto em nível federal como também estadual e municipal, e essas últimas esferas têm certa autonomia para acrescentar e adequar com os 40% restantes, existiram movimentos de buscar melhorar a Base, mesmo considerando suas premissas indubitavelmente discutíveis.

De outro modo, o resultado desses documentos poderia causar ainda maiores impactos negativos para o desenvolvimento de uma educação que considere as pluralidades e a democracia. Não é um debate fácil.

Disputar elaborações e aplicações

Existem argumentos sérios a considerar, tanto por parte da refutação integral desses documentos, passando por diversas nuances, até as tentativas de disputar suas elaborações e desenvolvimento com vistas a ampliar as abrangências, instigando um caráter progressista, evitando o predomínio das limitações pautadas em fundamentalismos religiosos e políticos da direita liberal e da extrema direita.

Para tentar ser prático, observemos algumas citações da BNCC, que constam também em documentos estaduais e municipais e podem ser desdobradas e aprimoradas diante das questões regionais asseguradas na ordem de 40% do currículo, como dissemos acima.

Primeiramente, a competência geral básica número seis: “Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”.

Depois, um dos objetos de conhecimento de História para o 9º ano no currículo de Minas Gerais: “A questão da inserção dos negros no período republicano do pós-abolição. Os movimentos sociais e a imprensa negra; cultura afro-brasileira como elemento de resistência e superação das discriminações”.

E por fim, a habilidade (EF04GE01) de Geografia do 4º ano do ensino fundamental: “Identificar e selecionar em seus lugares de vivência, a partir de histórias familiares e/ou da comunidade, elementos de distintas culturas (indígenas, afro-brasileiras, de outras regiões do país, latino americanas, europeias, asiáticas, entre outras), valorizando o que é próprio em cada uma delas e sua contribuição para a formação da cultura local, regional e brasileira”.

Tenho muita convicção de que ninguém poderá negar que tais elementos da BNCC são mais democráticos, inclusivos e, quiçá, revolucionários, do que grande parte do professorado brasileiro.

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Portanto, é preciso ser precavido em relação as discussões sobre currículo na atualidade, que de forma alguma são desprezíveis, mas também carregam complexidades, disputas e têm seus limites. Afinal, se afirmarmos constantemente, irredutivelmente, que o problema da educação brasileira é a BNCC e afins, estaremos mais próximos da visão apresentada na propaganda governamental do que o oposto.

Carências múltiplas

Nossas escolas têm carências tão básicas, como falta de professores, carteiras, boa alimentação, quadras esportivas, bibliotecas, livros didáticos e até de água e papel higiênico, além de serem carentes do abraço da sociedade em sua defesa incondicional.

Como disse uma estudante de licenciatura de origem quilombola, com sangue nos olhos, outro dia, não faz muito sentido ficarmos mal dizendo o tempo todo os referenciais curriculares quando em sala de aula as práticas são tão pobres, com tanto despreparo e preconceitos.

BNCC foi fruto de um golpe e implementada sob marretadas empresariais

Ou, como também ouvi recentemente de militantes e educadores negros, discutindo a perenidade do racismo em um encontro com um gestor municipal, de que pouco resolve realizarmos palestras e atividades, tantas vezes sem a devida remuneração de pesquisadores e oficineiros, sem criarmos condições materiais dignas e exigirmos um trabalho integrado e efetivo nas escolas.

Há sim questões estruturais, estatais, históricas, que dificultam a construção da educação de que necessitamos. Porém, precisamos repensar a reatividade e a lamúria pouco críticas diante das necessidades urgentes e dialéticas do real, para fortalecermos e realizarmos as transformações.

É preciso em especial que aqueles com consciência e boa formação mobilizem conhecimentos e energia assumindo sua responsabilidade e trabalhem dia após dia para a construção de condições para as mudanças possíveis e, aquelas tidas, ainda, como impossíveis.

Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor Doutor do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor de História nas redes municipal de Poços de Caldas e estadual de Minas Gerais por quase duas décadas. É especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP).

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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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