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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Crônicas de viagem V: amizades

Foi pela amizade que fizemos essa longa travessia

Por Luciano Mendes

“Amigo é coisa pra se guardar / Debaixo de sete chaves / Dentro do coração”, Milton Nascimento

Poderíamos dizer que foi pelas aventuras, pelos conhecimentos, pelas paisagens ou pelos sonhos. Outras pessoas poderiam dizer que foi, na verdade, pela falta de algo melhor para fazer, como, por exemplo, capinar um eito, preparar uma aula ou escrever um artigo. É bem provável que seja por isso tudo. Mas, para mim foi, sobretudo, pela amizade.

Foi pela amizade que o Tarcísio e eu acalentamos, durante anos, a ideia de acompanhar o Jequitinhonha em seus vales – sonho do Tatá – e de atravessar a Chapada Diamantina de sul ao norte  – sonho meu -, tudo de carro. E juntos!

Foi pela amizade que convidei para viajar conosco o Luiz Rena, amigo e companheiro de tantas aventuras, e certas desventuras, vividas em diferentes territórios da vida ao longo de quase meio século. Mesmo que ele não tenha podido partir conosco, acompanhou a viagem toda e participou de muitas de nossas alegrias.

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Foi pela amizade que o Tarcísio convidou para formar conosco um “quarteto fantástico” o Valter Bracht, paranaense que adotou o Espírito Santo como lugar de moradia, pessoa radicada integralmente em seu alemão-brasileiro e que, caindo na estrada, conta piadas picantes e outras nem tanto.

Ao longo da viagem, pude acompanhar, do banco de trás do carro, a atualização de uma longa amizade e as inúmeras vezes que, em intermináveis conversas, fundaram e refundaram a educação física escolar no Brasil e sonharam com um mundo outro, com uma escola outra, em que o cultivo dos corpos seja feito de forma mais alegre e brincante.

Foi pela amizade que o Tarcísio ocupou muitas horas de sua vida, ao longo de muitos meses, a preparar, minuciosamente, como bom virginiano que é, a nossa viagem. Dos roteiros aos quitutes, da seleção musical aos livros que nos foram dados como presentes, tudo fazia parte de um planejamento que nos permitiria, como permitiu, ir ao encontro dos acasos de maneira tranquila e confortável.

Por falar em conforto, foi também pelas amizades que esse mesmo Tarcísio cumpriu a promessa de comprar um carro que nos coubesse a todos, e o fez, lá em Uberlândia, para onde foi de ônibus para trazer o nosso novo “Tatarana”!

Foi pela amizade que o Tarcísio dirigiu nossos passos para Cordisburgo e nos permitiu adentrar o seu templo sagrado, ao seu universo onírico, sentimental e literário, a casa do grande e inesquecível João Guimarães Rosa. Só quem conhece os dois, o Tatá e o João, pode aquilatar o quanto essa experiência, como uma rara iguaria, é reservada a poucos.

Foi pela amizade que a Angelita nos recebeu em Brumado, já na Bahia, e nos preparou a comida mais inusitada e das mais deliciosas que pudemos experimentar na viagem: bode, pirão de maxixe, palma picadinha, arroz e feijão. E ainda me deu uma garrafa de pinga! E, para terminar, foi na amizade que nos convidou para conhecer sua mãe e seu pai que, para a surpresa do Tatá, se chama Valdemar, o mesmo nome do pai dele. Lágrimas de alegrias e lembranças tantas rolaram.

Foi pela amizade que a Antonieta palavreou, em Rio de Contas, uma quenga para ‘nosotros’, pelo que pudemos comer uma galinha com milho verde da melhor qualidade. E foi por essa mesma amizade que ela abriu para nós o portão de seu terreiro, nos apresentou seus encantados todos e nos fez vibrar nas energias de seus orixás.

Foi pela amizade que as pessoas que nos guiaram na Chapada Diamantina foram indicando umas às outras, expressando admiração e companheirismo entre elas, sem pedir nada em troca, a não ser um muito obrigado e as alegrias de um possível encontro com quem gostam e se solidarizam, sem jamais terem se encontrado pessoalmente.

Foi pela amizade que atravessamos 500 km (ká emes!) de Lençóis a Petrolina, para lá nos encontrar com o Felipe e sua trupe. Foi pela amizade recíproca que ele, Karen, o Simon e o Matias nos deixaram participar de sua festa junina e nos possibilitaram a experiência única de banhar-nos num São Francisco de rara beleza, e limpeza daquelas de ver os peixinhos no fundo do rio.

Foi pela amizade que o José Roberto fez o sacrifício de deixar de assistir parte do jogo do Flamengo para ir nos encontrar na orla do São Francisco, do lado de Juazeiro, conforme frisou, para nos presentear com comida gostosa, boa conversa e muitas histórias de sua cidade natal. Foi nesse passeio que soubemos da histórica rivalidade entre as cidades de Juazeiro e Petrolina, de seus artistas tantos – de João Gilberto a Ivete Sangalo – e das histórias de suas escolas espalhadas pelo centro da cidade.

Foi pela amizade que, depois de viajar outros 700 km, pudemos adentrar a casa da Ilka, lá em Ilhéus, e sorver uma deliciosa cerveja, especialmente gelada para nós. Foi pela mesma amizade que pudemos passar muitas horas em sua casa e na casa da Cintia e do Marcelo, conhecer a Cristiane e ouvir, a pedido de Tarcísio, longos, bem humorados e intensos relatos do que andam a fazer por aquelas bandas, mineiros que são.

Foi pela amizade que o Marcelo nos brindou com um lindo texto de agradecimento pela companhia, e que em um de seus trechos afirma:

“Ontem, nesse reencontro com vocês e comigo mesmo, pude perceber o quanto caminhamos, as pessoas que são imprescindíveis nessa nossa trajetória. Acordei com a sensação de alegria e não podia deixar de externar aos dois. Ontem vocês nos ensinaram muito, sobre simplicidade, sobre ser um verdadeiro intelectual, enfim, nesse momento difícil pelo qual estamos passando e que nos faz querer desistir, a presença de vocês nos mostrou que é possível fazer diferente. Que o conhecimento, a pesquisa e a universidade podem ser leves, simples e belos, e por isso mesmo, pensar a vida em sua profundidade. Espero poder ter mais encontros como esse”.

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Foi pela amizade que a Maria Helena (Bárbara!) nos convidou para pousar em sua casa em Canavieiras e, sobretudo, nos fez prometer que só iríamos a Belmonte, na foz do Jequitinhonha, se fôssemos de barco, passeando pelo manguezal, a coisa marlinda do mundo. O pouso não se realizou, pois não dormimos na cidade, mas o barqueiro amigo que ela nos indicou, o Márcio, foi certeiro e cuidadoso no trato e na condução, nos possibilitando uma experiência inesquecível de ver os encontros dos rios com o mar.

Foi por amizade que o João Valdir preparou nossa chegada a Turmalina, sua terra, indicando hotéis e pessoas a quem procurar. Foi por amizade ao João que fomos recebidos, na Casa de Cultura, pelo mais que generoso e brincalhão Gilmar Souza, que move este e outros mundos para deixar a vida do Vale e de todo o mundo mais divertida e alegre de viver.

Foi pelas amizades ali cultivadas entre os frequentadores da Casa de Cultura que pudemos receber, em primeira mão, e das mãos do próprio autor, o novo livro do Tadeu Martins que, muito gentilmente, convocado por um amigo, deixou tudo que estava fazendo e foi ao nosso encontro, quando nos brindou com uma longa e intensa conversa sobre as travessias do Vale do Jequitinhonha desde os anos de 1970 até os dias atuais.

Foi pela amizade com o Tatá que a Janeuce Cordeiro foi ao nosso encontro e armou um complô para que dormíssemos mais uma noite em Turmalina, para o que ofereceu a sua própria casa para nos hospedar. Foi pela amizade, portanto, que pudemos participar de outras amizades e redes de sociabilidades afetivas e políticas que ali se tramavam naquele dia, tendo em vista o lançamento do livro do Tadeu Martins e muito mais.

Foi pela amizade que a mesma Janeuce nos permitiu adentrar sua solidária, delicada e cuidadosa amizade com a Maria, pessoa mais radicalmente simples que já conheci, e nos fazer ver que a morte, muitas vezes, pode ser a abertura de enorme porta para a vida. Foi pela amizade já começada que ela me permitiu, também, ocupar a sua cozinha e preparar o frango caipira com angu e arroz pelo que eu tanto ansiava.

Foi pela amizade, essa espécie de amor sem cobranças, de erotismo prazeroso por estar com as outras pessoas, no mundo delas que habita o nosso e vice-versa, que o mundo foi – e continua sendo – encantado há milênios.

Foi por este amor sem fronteiras pelas populações humanas e não humanas que habitam o mundo, esse sentimento/monumento que sonha e fecunda mundos outros, mais solidários e amorosos, que viajamos, quero crer.

Por isso posso reafirmar: foi por todos os motivos, confessáveis e inconfessáveis, mas foi, sobretudo, pela amizade que fizemos essa longa travessia. E é em reconhecimento e louvor às amizades tantas, que encantam nossos mundos e nossas vidas, que eu as registro aqui!

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

*Ao Tatá, ao Valter e ao Luiz pela amizade e pelas alegrias tantas compartilhadas ao longo de uma vida vivida sem remorsos.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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