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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

O Brasil que deixamos de ser

É a hora de um enfrentamento público mais direto, de escancarar ao povo brasileiro o que está em jogo, de demonstrar o país que podemos ser, sem medo

Por Marcelo Silva

“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.” (Walter Benjamin). Imersos em nossos cotidianos e afazeres, lutando por nossa sobrevivência, entre uma notícia e outra, reafirmamos nossa repulsa pela política e pelos políticos, sem ao menos termos tempo, profundidade ou qualquer mobilização em meio ao turbilhão de informações que inundam as redes sociais  e acaloram os debates no país, cada vez mais polarizado e consumido por narrativas inventadas e pós-verdades. 

Neste contexto, como  historiador, há uma angústia que me acompanha há tempos: a de não termos a dimensão ou a consciência do país que deixamos de ser. Afirmo isso em relação às estratégias adotadas nas esferas social, econômica, política e educacional.

O que seria de nós, hoje, se durante os debates sobre a abolição da escravidão, no século 19,  houvesse vencido a proposta de abolir a escravidão com reforma agrária? Angela Alonso, no livro Flores, votos e balas, que trata do movimento abolicionista, nos mostra os diferentes projetos em disputa naquele momento, entre eles, o projeto de realizar uma reforma agrária, que foi derrotado.  

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Figuras públicas consagradas, como o escritor José de Alencar (senador naquele momento) e outros, defenderam, em nome do “bem do país e da economia”, que o processo ocorresse sem nenhum tipo de política pública para as pessoas em condição de escravizadas. 

O que seria de nós?

O que seria de nós, hoje, se as reformas de base tivessem sido levadas adiante e não tivesse ocorrido o golpe militar? O que seria de nós sem a fuga em massa de intelectuais progressistas, o fim de vários projetos culturais, a caça e o assassinato de várias pessoas e o encerramento de vários projetos em vigor naquele momento? O que seria do Brasil sem o aniquilamento de toda proposta de soberania nacional destruída pela ditadura militar? 

Qual país seríamos se, no acalorado debate educacional iniciado nos anos de 1920 entre os intelectuais defensores da educação pública e aqueles alinhados ao setor privado, tivesse permanecido a proposta liderada por Florestan Fernandes de toda verba pública ser destinada à educação pública? 

Imagine se toda proposta de educação democrática, popular, progressista tivesse se tornado hegemônica? Se não tivéssemos sofrido boicote de projetos como os Ciep’s, de Brizola e Darcy Ribeiro, às Escolas Parque, de Anísio Teixeira, e tantos outros que a maioria da população brasileira nem sequer teve a chance de conhecer ou saber de sua existência. 

Que país seríamos se não tivéssemos todo o movimento de privatização e políticas ultraliberais iniciadas nos anos de 1990? E se a Vale do Rio Doce ainda fosse nossa? Será que estaríamos, literalmente, soterrados pela mineração que só explora nosso território sem o retorno social ao país? 

E se não tivesse ocorrido o esfacelamento da Petrobras, que hoje acumula distribuição recorde de seus dividendos aos acionistas enquanto praticamente não temos investimento de projetos outrora financiados pela estatal? 

O que seria de nós se o pré-sal não tivesse sido entregue às multinacionais do setor petrolífero e estivéssemos distribuindo seu rendimento para a saúde e educação, como havia sido aprovado pelo governo Dilma, deposto por um golpe em 2016?

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Aliás, é bom lembrar que o documento apresentado pelo articulador do golpe na época, Michel Temer, denominado Uma Ponte para o Futuro, cumpriu bem com a missão que lhe foi dada. A reboque do golpe de 2016, sem que nem percebêssemos, distraídos pelos “patos amarelos” da Fiesp na avenida Paulista e camisas da seleção brasileira, crentes na narrativa anticorrupção, o parlamento aprovou as reformas trabalhista, da previdência e do Ensino Médio. 

Além disso, congelou-se por 20 anos a capacidade de investimento do Estado brasileiro. O teto de gastos, à época, apelidada de PEC da Morte, virou a Emenda Constitucional 95, e até hoje, sem que muitas pessoas tenham a dimensão do que essa medida significou, não fazem ideia do que isso nos limita enquanto possibilidade de crescimento social, econômico e cultural. 

O futuro depende de nós

Seguimos a História sem a dimensão cotidiana das consequências de todas as medidas tomadas no âmbito político. Presenciamos a redução do debate em cortes de vídeos que viram reels no Instagram, ou memes produzidos com o intuito de desvirtuar o debate. Enquanto isso, lemos notícias sobre jantares oferecidos por empresários com figuras que assaltaram o orçamento do Estado, uma negociata descarada e sem o menor pudor, que visa impedir a correção da histórica injustiça tributária brasileira. 

Em menção ao golpe de 15 de novembro de 1889, que deflagrou a República no Brasil, Aristides Lobo, um republicano e político brasileiro, escreveu no jornal Diário Popular: “O povo assistiu àquilo bestializado”. O historiador José Murilo de Carvalho eterniza a expressão a partir do livro Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi

Apesar da crítica historiográfica em torno da perspectiva adotada na obra de José Murilo, faço menção a ela para propor uma reflexão que dialoga um pouco com o texto jornalístico de Aristides Lobo. Não acho que assistamos a tudo bestializados, talvez distraídos. Mas é plausível dizer que a República continua não indo, ou melhor, continua seguindo um caminho, junto ao parlamento brasileiro,  oposto aos anseios do povo. 

Em suma, havia outros caminhos e possibilidades, que não passavam por um governo de “conciliação” pelo alto, como foi a marca de todos os governos republicanos, aí incluídos os mandatos do presidente Lula. Talvez seja a hora de um enfrentamento público mais direto, de escancarar ao povo brasileiro o que está em jogo, de demonstrar o país que podemos ser, sem medo!  O desfecho desse contexto depende das ações e articulações políticas, por isso mesmo, nosso futuro é preocupante. O que será de nós?

Leia outras crônicas e artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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