Ouça a Rádio BdF
A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Livremo-nos dos fundamentalismos, amém!

Apocalipse nos trópicos apresenta o papel da religião no comportamento das pessoas

Por Marcelo Silva

“Não há diálogo no reino da absoluta confiança,

assim como não há diálogo no reino da desconfiança absoluta” – Mário Chagas

Como professor, uma das frases mais bonitas que ouço dos meus alunos, quando em contato com algum conhecimento novo, é: “professor, nunca parei para pensar nisso antes!”.  E foi assim, pensando, que me senti ao assistir Apocalipse nos trópicos, de Petra Costa. O documentário fez ressurgir em mim sensações incômodas, de um contexto recente que considero dramático e traumático para a história política brasileira.

Vendo a obra, eu parei e pensei, muito, sobre a narrativa construída pela diretora. Fiquei com a impressão de que ela nos indica caminhos pedagógicos. Em texto escrito para essa mesma coluna, eu disse que falta pedagogia no campo das esquerdas. Reafirmo que, junto a isso, talvez seja necessário aprofundar o diálogo com grupos divergentes, em termos de perspectiva de mundo.

O filme apresenta o papel da religião no comportamento das pessoas, inclusive no voto. Há, certamente, uma complexidade que envolve toda uma estrutura de produção de notícias falsas, articulações de líderes religiosos com projetos de poder bem definidos e o uso de Guerras Híbridas (Andrew korybko), articulado às práticas utilizadas pela extrema-direita em todo o mundo. No entanto, talvez haja uma fresta que nos possibilite atuar no mesmo canal cognitivo desses grupos sociais. 

:: Acompanhe o podcast Visões Populares e fique por dentro da política, cultura e lutas populares de MG e do Brasil ::

Venho de uma formação católica, construída no âmbito familiar, que conviveu com uma igreja que antecedeu o movimento de renovação carismática, muito articulada aos movimentos de associações de bairro, que vivenciava, como espírito do tempo, a noção de comunidade. Foi com esse repertório que cheguei à universidade e, enquanto estudante, fui estagiar no arquivo histórico da Arquidiocese de Juiz de Fora. Naquela época, tive contato com uma estrutura da Igreja enquanto instituição e pude ter a dimensão da sua complexidade. 

O contato com os documentos ali guardados e também a leitura de alguns livros da biblioteca da Cúria Metropolitana me fizeram “parar para pensar” que o mundo não funciona de maneira maniqueísta. 

Para ser mais exato, a leitura do livro Diálogos na Sombra, de Kenneth Serbin, despertou esse cuidado analítico sobre o olhar do outro e suas convicções. O autor apresenta a criação de uma comissão bipartite, após 1964, uma articulação entre a igreja e os militares, costurada pelo Centro Dom Vital e a Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, para tratar das prisões de militantes católicos pelo regime. Por ser americano, o pesquisador teve acesso livre aos documentos do exército e também da igreja. 

Retorno ao eixo deste texto, que trata da complexidade daquilo que é mobilizado pelos sujeitos em suas existências, e que precisamos atentar para podermos entender os movimentos ocorridos no Brasil nos últimos anos.

Sempre externei um certo incômodo sobre a ideia de que as pessoas são subjugadas por incapacidade de entendimento do mundo, ou por não terem consciência de classe, somente. Esta questão é muito bem definida por Lula no filme citado, quando ele diz ter a tese de que, em parte “o socialismo não deu certo por negar a religião”. Se tomarmos os estudos sobre a formação da classe operária, no caso da Inglaterra, teremos a perspectiva de Thompson que, além de considerar “os costumes em comum” dos sujeitos, também aponta a relevância do papel dos metodistas nesse processo.

No Brasil, muitos movimentos sociais e até partidos políticos têm seu surgimento vinculado aos movimentos sociais da igreja. Por exemplo, o papel da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A importância das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) em movimentos de organização da classe trabalhadora etc. Bispos como Dom Helder Câmara, Dom Waldyr Calheiros, Dom Claudio Humes, Dom Paulo Evaristo Arns, entre outros, tiveram atuação fundamental junto à classe trabalhadora, em uma época em que prevalecia a Teologia da Libertação, que não influenciou somente a igreja católica no período.

O que estamos vivenciando atualmente não é uma falta de consciência das pessoas, mas uma mudança de concepção teológica que dominou os rincões do Brasil e adentraram as mentes dos sujeitos, no caso, a predominância da Teologia da Prosperidade. E neste aspecto, aproxima os sujeitos das ideias neoliberais, implode a noção de comunidade e potencializa o individualismo. Como dialogar com esses sujeitos, então?

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

É aqui que Apocalipse nos trópicos sugere caminhos pedagógicos. É preciso entender o que move as pessoas. Quais espaços de formação social estamos, enquanto esquerdas, construindo nas periferias? Por que as igrejas evangélicas alcançam os anseios desse povo e nós não? Será que não estamos “aprisionando” os sujeitos em uma concepção de operário do século XIX? Quais os verdadeiros anseios, e não as projeções realizadas por nós, esses sujeitos carregam?

Uma materialidade dessa reflexão pode ser exemplificada nas falas, por vezes sectárias, que ouço de intelectuais que sabem de cor as prescrições que os trabalhadores devem seguir para alcançarmos a revolução.

Permitam-me encerrar com um pequeno texto, que este trabalhador que aqui escreve, cansado de carregar a culpa pelo fracasso social brasileiro, fez, em 2014, para responder a um colega, professor universitário, que dizia que precisávamos entender o que um certo teórico escreveu, enquanto isso, nos manteríamos em nossa condição de explorados. 

DÁ LICENÇA, SEU DOUTOR!

Para saber o que é exploração

Antes de ler o fulano sabichão

é preciso “bater o cartão”.

Não venha me dizer o que fazer

Você não sabe nada sobre o

Sobre(viver)

Guarda essa sua van(guarda) filosofia

Quem sabe assim,

Quem sabe um dia

Nos livraremos das opressões.

Daqueles que nos exploram

e dos que nos consideram incapazes.

Marcelo Silva é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e Coordenador Nordeste do Portal do Bicentenário: 200 anos de escolas públicas no Brasil.

Leia outros artigos na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Veja mais