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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

O que quer dizer Educação Integral?

Educação é uma aposta no futuro, mas nada garante que terá sucesso

Por Luciano Mendes e Natália Gil

A Educação Integral está na moda. À esquerda e à direita, o tema mobiliza pessoas, instituições e coletivos os mais diversos. Termo polissêmico, a Educação Integral não significa, claro, a mesma coisa para todo mundo.

Por parte de pessoas e coletivos engajados na defesa e promoção da democracia, da inclusão e de uma educação de qualidade para todes, educação integral significa um conjunto de práticas e de políticas que buscam construir uma sociedade mais democrática e igualitária por meio da educação.

Nesse caso, o foco está em criar as condições para uma educação que seja a mais abrangente possível, que chegue efetivamente a todas as crianças e jovens, que promova o melhor desenvolvimento possível de suas potencialidades.

De outro lado, quando indivíduos e grupos menos afeitos à causa democrática e pouco entusiastas de uma maior igualdade sócio-político-econômica dissertam sobre a questão, a educação integral tem significado diverso.

Nesse caso, o que está em jogo é a possibilidade de impor à própria prole e, quando possível, à prole alheia uma proposta de educação que, em seus fazeres e nos seus objetivos, almeje formar sujeitos integrados socialmente (que aceitem com passividade viver na sociedade injusta que temos) e prontos a atuar na defesa e reprodução de seus próprios privilégios.

Educação integral ou escola de tempo integral?

Antes de seguir, tem uma diferença que é preciso destacar. Educação integral não é necessariamente o mesmo que escola de tempo integral.

Às vezes, aliás, para chegarmos a ter uma educação que permita que os indivíduos se desenvolvam mais plenamente, do ponto de vista cognitivo e social, é preciso que haja um pouco menos de escola na vida de cada um ou, ao menos, que se leve em conta que é preciso menos experiências educativas restritas à forma escolar.

De modo algum a ideia aqui é diminuir o direito à educação escolar para todos. Mas vale lembra que a escola tem limites institucionais que impedem ou dificultam várias dimensões da formação humana que são fundamentais. Por exemplo, aprender sobre amor e amizade é algo que tem acontecido na escola, mas que se dá mais nos intervalos do que em outros tempos escolares e é (quase) sempre considerado intromissão indevida na vida escolar.

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Educação integral tem, portanto, a ver com a garantia de tempo e espaço para o processo de humanização, para a aprendizagem de conhecimentos formais escolares, mas também para as aprendizagens que transcendem esses conhecimentos.

Já a escola de tempo integral diz respeito à ampliação das horas que crianças e jovens passam na escola. Aqui também é preciso demarcar uma diferença importante.

A pesquisadora Ana Maria Cavaliere explica que, de um lado, há propostas que focalizam a melhoria das condições para que professores e alunos estejam na escola em turno integral, ampliando a realização de atividades mais tipicamente escolares. De outro lado, existem proposições em que a escola se articula com instituições multissetoriais, utilizando outros espaços para promover experiências formativas variadas.

E quando mais escola significa mais opressão?

Algumas vezes, as propostas de educação integral não consideram que a educação é, antes de tudo, uma aposta, no presente, que o passado faz no futuro, mas nada garante que terá sucesso. Mas, de um modo geral, as pessoas suficientemente atentas sabem que, no limite, a educação integral é impossível.

Não apenas é impossível organizar uma educação de fato integral, como é preciso considerar que os sujeitos desta educação, em suas agências, sempre inventarão novas possibilidades de educar-se e, por outro lado, abandonaram outras que lhe foram ofertadas. Neste sentido, educação integral funciona como uma espécie de repertório, ou seja, como um termo que busca mais eficácia prática e política do que coerência doutrinária.

Historicamente, as propostas de educação integral, em sua forma escolar, guardam relação direta com projetos educativos de cunho autoritário e, notadamente, religioso que advogam que a educação integral é, ao fim e ao cabo, a educação tal qual ofertada pelas igrejas cristãs. Nessa perspectiva, a “educação completa” do homem novo, pensada por Kant ou Rousseau, ou, ainda, pelos anarquistas, para citar alguns nomes, não pode ser confundida com educação integral.

Mas mesmo propostas mais progressistas como a escola de tempo integral ou escola integrada precisam ser interrogadas quanto à naturalização que parecem fazer dos tempos sociais que, por exemplo, as diversas gerações deveriam (ou poderiam) dedicar ao trabalho e à educação escolar (e auto formação).  

Não haveria, nas propostas à esquerda e à direita, a ideia moralista e preconceituosa sobre os pobres, de que é melhor mantê-los na escola e evitar que convivam com suas próprias famílias e em suas comunidades? Não haveria aí, uma certa noção salvacionista e moralizante da escola em relação às camadas populares?

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Assumir o tempo da escola como sendo naturalmente de qualidade superior aos demais tempos e espaços socioculturais acaba por justificar, política e ideologicamente, a expansão do tempo de escolarização diária, ainda que em condições muito precárias.

Para as crianças e jovens de classes populares, a tendência é que as elites considerem que qualquer lugar é melhor do que a pobreza de seus lares. Nessa lógica, mesmo uma escola estruturalmente empobrecida e precarizada pela falta de investimentos públicos parece ser considerada melhor lugar para estar do que a moradia e os espaços de convívio comunitário das classes populares assumidos preconceituosamente como imorais e insalubres.

De todo modo, é importante ressaltar que as propostas de educação integral elaboradas no interior das tradições democráticas de formação humana têm contribuído para avançarmos na discussão de uma escola integrada aos demais tempos-espaços de formação das novas e das velhas gerações.

Almeja-se que tais escolas sejam capazes de acolher, cuidar e ensinar a crianças, adolescentes, jovens e às pessoas adultas e idosas, sensibilidades, conhecimentos, valores e comportamentos que possam se traduzir em práticas mais solidárias, igualitárias e democráticas de convivência entre si e com as demais populações que habitam o planeta.

Mesmo que uma educação integral seja, de fato, impossível, é necessário e salutar termos horizontes utópicos a nos direcionar.

Luciano Mendes (UFMG) e Natália Gil (UFRGS) são editores da coluna Cidade das Letras do Brasil de Fato MG.

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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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