Ouça a Rádio BdF
A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Crônicas de Viagem VIII: sobre comidas e outras histórias

A comida é parte densa e criativa de uma cultura

Por Luciano Mendes

O que é mais gostoso, um pato ao tucupi ou um frango com quiabo? Um torresmo de barriga ou uma costela de tambaqui? Um bode guisado ou um caldeirada de filhote? Dentre estas e muitas outras alternativas pelo Brasil afora, há sempre alguém a perguntar qual é a melhor.

Outro dia, em Belém, onde fui participar do Simpósio de 15 anos do Laboratório de Pesquisas em Memória e História da Educação (LAPEM-UFPA), estive a perguntar a várias pessoas sobre qual é a melhor comida paraense. Elas, invariavelmente, me respondiam que a comida de lá é a melhor do mundo, e do Pará!, e que uma comida para ser boa mesmo precisa ser acompanhada de açaí. Mas, enfatizavam, tem que ser o verdadeiro açaí, e não esta “coisa esquisita” que vocês comem lá pelo sul!

Como eu já disse por aqui em outra ocasião, para conhecer uma cidade é preciso mastiga-la, degluti-la ou, dizendo de outro modo, comê-la. A verdade, se é que verdade verdadeira há nestas apreciações, é que as cidades constroem circuitos e experiências gastronômicas as mais diversas e o melhor da vida, pelo menos assim me parece, é poder aproveitá-las todas, sem a necessidade de classifica-las.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

E, como sabemos, a comida, os modos de fazer e de comer, são das partes mais densas e criativas de uma cultura.

Em Belém, a cultura que é dada a ver, ou melhor, a comer, pelas várias bandas da cidade, incluindo aí o impagável Ver o Peso, é um amalgama de muitas culturas. Das formas mais ou menos rápidas de preparar o peixe fresco à elaboradíssima maniçoba – comida cujo ingrediente principal, a folha da maniva (mandioca brava), precisa ser cozinhado por 7 dias –, são comidas que guardam mistérios e segredos, e cujas origens estão cercadas de controvérsias históricas e culturais.

Aproveitamos a estadia em Belém para conhecermos a Ilha de Cumbu, apreciar a sua beleza e experimentar sua culinária. A viagem de barco, rápida e tranquila, levou-nos, margeando o rio Guamá, a adentrar a um igarapé e conhecer um expressivo conjunto de restaurantes ribeirinhos. Tudo nos parecia lindo e maravilhoso até que alguém nos chamou a atenção para o crescente – e visível – assoreamento do igarapé por onde passávamos. A causa? A contínua passagem dos pequenos barcos transportando turistas que, como nós, queriam ver (e comer) as belezas e gostosuras locais.

Apesar das pequenas e fracas, as ondas causadas pelo passar dos barcos, estão a provocar não apenas a queda de árvores e casas à beira do igarapé, mas também o desaparecimento de uma espécie de camarão que contribui para a renda a população ribeirinha. É, mais uma vez, o impacto avassalador e, já ali, destrutivo do passeio transformado em turismo e realizado à revelia dos tempos e modos de funcionamento da chamada “natureza”.

É claro que a cidade está tomada pelo espírito da COP-30 que, infelizmente, entrou no noticiário nacional e internacional mais pelo preço das hospedagens do que pela relevância histórica, e estratégica para os destinos do planeta, que ali serão debatidos.

Mas, antes da COP-30, Belém nos lembra as pessoas nativas. Haverá o Círio e a cidade será mais uma vez espírito da mais importante festa religiosa do estado. Eu disse “a cidade”? Pois no Museu do Círio fiquei sabendo que há décadas a festa vem se espalhando por muitas outras cidades do Pará, cada uma delas com um dinâmica própria e com a participação de variados sujeitos sociais.

Não faltou tempo para ir a Icoaraci conhecer a olaria do Mestre Rosemiro Pereira, aproveitando para dar uma passada na olaria do Mestre Doca Leite também. Conversar e aprender com os mestres e suas equipes sobre os saberes e as sabedorias dos ofícios foi uma experiência única.

O Mestre Rosemiro, sobretudo nos falou de aprendizados muitas e da vida de oleiro/artista, enquanto opera a magistral transformação do barro em arte. Vida e ofícios se entrelaçam na constituição de subjetividades e corporeidades que se expressam em belas e complexas obras de arte.

Acima eu me referi ao Ver o Peso, o destino mais famoso sugerido a todas as gentes que se dirigem à capital paraense. Não sendo a minha primeira visita por lá, pude observar os detalhes e ver o mercado por outros ângulos. Como eu disse na crônica anterior, esta é uma vantagem de revisitar uma cidade que a gente já conhece.

Um dos ângulos pelos quais pude rever o mercado foi o das barracas que vendem óleos naturais que prometem resolver todos os nossos problemas. Ditas em voz baixa ou cantadas em plenos pulmões, as propriedades e formas de uso dos conteúdos dos pequenos frascos (algumas das quais não podem ser sugeridas a pessoas de menor idade!), estão além da imaginação. Aprendi que, brincadeiras, risadas e diagnósticos à parte, não se pode sair de lá sem uma daqueles frasquinhos milagrosos que valem muito mais do que pesam! Pelo menos é o que dizem!

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

Leia outras crônicas e artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Veja mais