Por Luciano Mendes
A semana passada, em Belo Horizonte, fomos assistir à apresentação do Grupo Corpo, uma das mais importantes companhias de danças do mundo, que está completando 50 anos e estreando espetáculo novo: Piracema!
Me senti invadido por uma torrente de alegria, espanto, inquietação, bem-estar, emoção e muitos outros sentimentos e sensações. Como dizemos em Minas, e nos Gerais, uma apresentação do grupo é a coisa marlinda do mundo, e esta está especialmente brilhante. O Corpo é, de fato, um arquivo de movimentos que transfiguram o cotidiano em pura obra de arte!
Como o meu corpo mais leve e cheio de boas lembranças, passei os dias pensando nas coisas boas da vida. Percorrendo os labirintos traçados pelas coreografias do Corpo, fui encontrar umas das lembranças mais gostosas que tenho que é a de, na pesquisa em história da educação, trabalhar em arquivos. E nos últimos quarenta anos trabalhei muito neles.
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A expectativa de encontrar, nos documentos, algo que nos ajude a responder às nossas perguntas, o encontro com pessoas de outros tempos, a falta de lógica dos arquivos… a sua desorganização, sua deterioração, os seus desafios. Até mesmo o cheiro de papeis velhos nos mobiliza. Por falar em cheiro de papeis velhos, um colega da USP sempre brincava que papel, tinta, mofo e humidade fazem exalar um certo “ar carregado” que tem o poder de inebriar às pessoas historiadoras.
Por isso, ainda lembrando o Grupo Corpo, pensei que, em muitos sentidos, o trabalho da pessoa historiadora no mundo contemporâneo é uma contínua piracema: estamos sempre lutando contra as correntezas do tempo, da destruição dos arquivos, do esquecimento.
Mas são tantos os arquivos com os quais lidamos ao longo da nossa vida, que nem precisa ser alguém que pesquisa em história para ter contato quase diário com eles. Quem é que não tem em sua casa um arquivo pessoal, por mínimo que seja?
Há sempre um arquivo a nos lembrar de algo, a nos devolver de volta a passados próximos ou longínquos que habitamos ou que inventamos para nós mesmos. Mas sei que há pessoas, límpidas, que dizem nada guardar e nada arquivar. É o presente que importa!
Corpo: arquivo em movimento
No entanto, mesmo para quem é desafeto da guarda, não pode, ainda que quisesse, se desfazer da imperiosa presença do corpo, o arquivo vivo de nossas experiências.
A respeito disso, há algumas semanas, na Argentina, em um evento sobre a história das mulheres e relações de gênero, falava-se sobre as formas como o nosso corpo carrega e dá visibilidade às nossas experiências, e isto me atravessou pontiagudamente!
Assim, de um Corpo ao outro, fiquei pensando que nosso corpo arquiva e carrega experiências de antes mesmos de nosso nascimento. Somos arquivos vivos de milhares de anos, de milhares de encontros, de uma miríade de misturas e de muitos acasos.
Às vezes não nos lembramos, mas é sempre importante não esquecer que se recuarmos no tempo, cem ou duzentos anos, se muito, e de lá olharmos o futuro, veremos que a possibilidade de nossa existência, estatisticamente falando, tenderia a zero, pois quantos improváveis encontros tiveram que acontecer para nascermos?
Há marcas do tempo em nossa pele, em nossos olhos, em todo nosso corpo. São marcas de experiências de cuidado, de descuidos e de nossas circunstâncias. A mim me toca profundamente, por exemplo, as memórias que meus dentes me mandam guardar.
Algumas, por certo, eu gostaria de esquecer, mas eles estão bem à vista, e nunca me deixam de lembrar uma infância em que não havia escovas nem pasta de dente, muito menos água fluoretada, numa cidade em que não havia dentista e, muito menos, dinheiro para pagar pelo tratamento. Mas havia muita rapadura, cana de açúcar e frutas variadas. Arrancar – não se dizia, candidamente, extrair – , os dentes era a único alívio para a dor pungente que nos fazia chorar e implorar que passasse.
Olho para os meus dentes, sinto-os e miro o que há de mais ancestral em mim!
A natureza só existe na história e, portanto, mesmos os processos mais naturais, como o envelhecimento e suas consequências em nossos corpos, são, em boa parte, ainda que nem todas, resultado de nossas experiências. Rugas, cabelos que ficam branco ou que caem, ossos que enfraquecem, juntas que doem… são arquivos que atualizam continuamente memórias e histórias de um passado que insiste em se fazer presente.
Nunca é demais lembrar que, se, por um lado, nosso corpo arquiva nossas memórias, por outro, nossas memórias também são parte do corpo. Nossa consciência e, claro, as lembranças e os esquecimentos que nos habitam são, eles também, resultado de reações físico-químicas que têm lugar em nossos corpos, são neles armazenadas e não podem existir sem eles, ainda que, uma vez capturados, possam ser conservados e arquivados em outros suportes.
Arquivo em movimento, o corpo atualiza continuamente, apagando ou reforçando, histórias de exercícios, de performances, de hábitos alimentares, de viagens, de trânsitos, de encontros e desencontros.
Arquivo vivo, o corpo visivelmente atualiza, apagando ou reforçando, violências e lutas por libertação, por liberdade, por direitos de existir e resistir. Nossa pele, nosso cabelo, nosso tudo são objetos de leituras, de escrutínios, de enderaçamentos, de convocatórias, como arquivos de histórias passadas ou em construção.
Havemos de cuidar de nossos arquivos; havemos de cuidar de nossas histórias e memórias; havemos de cuidar de nossos corpos como suportes e lugares em que nós habitamos a nós mesmos, ainda que nem sempre saibamos d’isso.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.